A Gaiola Dourada, em análise
Chegavam de França ecos de sucesso de uma produção franco-portuguesa da qual, vamos confessar, pouco tínhamos ouvido falar durante os seus meses de produção. No entanto, bastou saber que “A Gaiola Dourada” apenas foi ultrapassado na bilheteira por “Homem de Ferro 3”, na sua primeira semana em exibição, para que o nosso interesse fosse aguçado. Mas os números impressionantes nas tabelas de box-office francês conseguiram ir mais longe do que seria imaginável: mais de um milhão de espectadores, no total acumulado, levaram-nos a questionar sobre o que tinha “A Gaiola Dourada” de especial e diferente.
Vimos o trailer, compreendemos o conceito e, embora admitamos que se tratava de uma temática (a emigração portuguesa em França) deveras interessante e com potencial para ser bem explorada, ficámos com a sensação que o sucesso de bilheteira se devia sobretudo aos gags estereotipados e ao fator ‘entretenimento fácil’ que levavam multidões francesas às salas de cinema para ‘gozar’ com o dia-a-dia dos portugueses emigrados. Não podíamos estar mais enganados. Estamos na presença de uma das mais agradáveis surpresas do ano.
Se é certo que “A Gaiola Dourada” usa e abusa da sátira às gentes lusitanas que habitam em França, também é verdade que essa análise satírica aos costumes, tradições e características lusas são usados sempre de forma consistente e verossímil. Trata-se de uma recriação autêntica e minuciosa das tradições portuguesas e da eterna saudade que sentem por um país que foram obrigados a abandonar.
O realizador luso-descendente Ruben Alves reúne neste filme os relatos e experiências que foi adquirindo ao longo de 30 anos de emigração e condensa-os numa história sobre a típica família portuguesa que se viu obrigada a mudar de país com o intuito de procurar trabalho e uma vida melhor. Ruben Alves pretende homenagear todos esses cidadãos lusos que vivem para o trabalho e trabalham para a família, mas nunca ‘goza’ com o quotidiano dessa comunidade, preferindo abrir-nos a mente para uma realidade a que somos alheios e que por vezes desrespeitamos inconscientemente. A haver algum tipo de troça, essa é feita sobretudo aos gauleses que nos acolhem mas que desconhecem totalmente a nossa realidade e que nos confundem permanentemente com ‘nuestros hermanos’.
A “gaiola dourada” que surge no título é uma clara alusão ao limbo emocional que sente aquela gente. Gente que prefere viver aprisionada numa gaiola onde se pode criar um estilo de vida sustentável, coisa que não seria possível num Portugal em crise, mas que os afasta dos familiares e entes queridos que vivem a centenas de quilómetros de distância.
A história que nos chega da sinopse oficial diz-nos que num dos melhores bairros de Paris, Maria e José Ribeiro vivem há cerca de 30 anos na casa da porteira no rés-do-chão de um prédio. Este casal de emigrantes portugueses é querido por todos no bairro: Maria uma excelente porteira e José um trabalhador da construção civil fora de série. Com o passar do tempo, este casal tornou-se indispensável no dia-a-dia dos que com ele convivem. São tão apreciados e estão tão bem integrados que, no dia em que surge a possibilidade de concretizarem o sonho das suas vidas, regressar a Portugal em excelentes condições, ninguém quer deixar partir os Ribeiro, tão dedicados e tão discretos. O filme coloca-nos na perspetiva da família Ribeiro e até onde serão capazes de ir a sua família, os seus vizinhos e os seus patrões para não os deixarem partir.
É verdade que estão lá todos os clichés: o amado futebol, a bela da cerveja, o bacalhau e todas as suas formas de apresentação, o arrepiante fado e até aqueles mais singelos atos como o de tapar um sofá com um cobertor para que este não se suje ou a inscrição de nomes de pessoas nas tigelas do pequeno-almoço… é uma panóplia de acontecimentos e de pequenas coisas onde não faltam oportunidades para nos identificarmos. Mas são esses momentos que lhe conferem autenticidade.
Sensível, humano e sincero, “A Gaiola Dourada” não poupa nos momentos caricaturais deliciosamente cómicos, mas não se esquece da saudade, do patriotismo, dos valores familiares. A propriedade “especial e diferente” que falávamos no início surge neste equilíbrio cómico-dramático que nos faz rir de nós mesmos e ao mesmo tempo enche o nosso peito de alegria e orgulho.
A direção de atores é um dos seus pontos fortes e ajuda a dar credibilidade ao argumento. A dinâmica do elenco promove a espontaneidade dos diálogos, coisa um pouco rara de se ver em filmes nacionais. Esse elenco é liderado por fortes desempenhos de Rita Blanco e Joaquim de Almeida que se assumem, principalmente a primeira, como dois dos grandes atores que o nosso país tem para mostrar ao mundo.
Fica implícito, na personagem do filho do casal Ribeiro, alguma vergonha de ser filho de pais portugueses. Mais do que a vergonha de ser filho de uma porteira e um pedreiro, persistia naquele jovem um certo estigma dos progenitores serem oriundos do país de Camões. Não vamos dizer que a adolescência não é marcada por fases menos compreensíveis, muito pelo contrário, mas Ruben Alves aproveita essa problemática e dá-nos, com esta personagem que funciona como antítese ao próprio filme, uma visão auspiciosa daquilo que é ser português.
É essa vergonha que nos consome, esse desrespeito que por vezes nutrimos pela nossa nacionalidade que deveria ser erradicado. “A Gaiola Dourada” dá a conhecer ao mundo, aos franceses mas fundamentalmente aos portugueses, a realidade pura de um povo que, em certa medida, está descontente com a vida e com o seu país, mas que é das nações mais lutadoras que alguma vez existiram.
É que apesar de sermos um povo pobre, não somos nem nunca seremos um pobre povo.
DR