Abbas Kiarostami (1940-2016)
O cineasta iraniano Abbas Kiarostami morreu aos 76 anos depois de uma vida que nos deu alguns dos mais belos, inovadores e visionários filmes alguma vez feitos.
Apesar de muitas vezes esquecido mesmo pelos mais aventurosos cinéfilos, o cinema iraniano tem sido, desde os finais do século passado, um dos mais inovadores e visionários no panorama cinematográfico mundial. Ontem, dia 4 de Julho, uma enorme tragédia abateu-se sobre esse mesmo cinema com a morte de um dos seus principais nomes. Abbas Kiarostami, uma das grandes vozes do cinema de autor contemporâneo, morreu aos 76 anos, vítima de cancro gastrointestinal que já estava a combater desde março deste ano.
Para entendermos a enormidade desta perda para o panorama do cinema mundial basta olharmos para o seu trabalho, uma filmografia recheada de alguns dos mais belos e complexos filmes no cânone moderno. Essa coleção de filmes e carreira começaram nos anos 70 no Teerão, cidade natal de Kiarostami, com curtas-metragens que tinham a vida de crianças como tema central.
Foi aliás esse o ponto focal do primeiro filme da sua autoria a causar sensação internacional, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? de 1987. Esse filme recorda Os 400 Golpes de Truffaut e Ladrões de Bicicletas de Sicca, tanto pela sua história mundana centrada num rapaz que tenta devolver um caderno perdido ao colega de escola, como pela sua técnica fortemente realista. Aqui Kiarostami estava a esvaziar o cinema do artifício que nele se havia calcificado ao longo do seu desenvolvimento, e procurava encontrar algo mais próximo da realidade, mais puro e humano. Parte da sua técnica para este filme foi o uso de não-atores a interpretarem versões de si mesmos, diluindo a barreira classicista que se impõe entre o filme e a realidade humana. Essa barreira seria completamente desmoronada e reconfigurada pelos seus seguintes projetos.
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Em 1990, Abbas Kiarostami fez aquele que viria a ser o seu mais celebrado marco cinematográfico, Close-Up. Consistia no retrato de um homem que se havia feito passar pelo famoso realizador Mohsen Makhmalbaf e enganado uma família burguesa. Aqui a linha entre documentário e ficção voltou a ser apagada com o burlão e todos os intervenientes a representarem para a câmara a sua história, enquanto Kiarostami os examina.
Como se tornou habitual nos seus filmes, Abbas Kiarostami não fez disto uma intelectualização fria de um caso judicial, mas sim um poema humano capturado em celuloide. O final, em que o enganador encontra o verdadeiro Makhmalbaf é um dos mais belos momentos na história desta arte, e Kiarostami afirmou-se assim como um mestre capaz de usar a o cinema como uma máquina de empatia e íntimo desassossego. Mas se a realidade e o artifício inerente ao cinema foram mesclados em glorioso híbrido por Close-Up, então o que Kiarostami conseguiu com os seus filmes seguintes foi nada menos que um milagre cinemático.
Depois de um terramoto ter abalado a região de Guilan, onde se tinha filmado Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, Kiarostami decidiu procurar os jovens protagonistas desse projeto de modo a descobrir se ainda estavam vivos. Dessa procura nasceu E a Vida Continua, sobre essa procura e um dos mais assombrosos documentos de resiliência humana no cinema, e desse filme nasceu outro, Através das Oliveiras, onde as filmagens e o romance de um par de atores de E a Vida Continua se tornam o centro da ação. O que é real e o que não é? Que interessam tais dicotomias. É cinema, é humanidade, e é glorioso, um hino ao poder de uma câmara e sua capacidade de preservar o olhar, de preservar o instante do amor humano, a imagem da emoção numa face jovem e a obsessão de um realizador com essa tapeçaria de sentimentos.
Seguindo esse titânico terceto de obras-primas, Abbas Kiarostami continuou a testar os limites do cinema e a quebrá-los com uma segurança incomum. Em 1997, ganhou uma Palma de Ouro por O Sabor da Cereja, onde um homem passa um dia no seu carro em busca de alguém que concorde em enterrar o seu corpo depois de este se suicidar. A condição humana continuou a fascinar Kiarostami, portanto, e continuaria a fazê-lo nos seus próximos filmes que estrearam nos mais prestigiados festivais do mundo. Referimos obras como O Vento Levar-nos-á e Dez.
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Já no século XXI, o realizador começou a demonstrar interesse em fazer filmes mais abertamente documentais, mas nunca se desapegou por completo das suas experimentações visionárias sobre o real e o fictício, como se pode comprovar em Shirin e Cópia Certificada. Nesse último, a primeira produção verdadeiramente internacional de Kiarostami, vê o realizador a retratar o que primeiro parece ser um encontro de desconhecidos interpretados por Juliette Binoche e William Shimell, que rapidamente se começa a revelar como uma complexa análise de falsidade e do artifício tanto na arte como na vida humana.
A sua final longa-metragem foi Like Someone in Love de 2012, gravado no Japão e que conta a história de uma jovem prostituta e sua relação de dois dias com um cliente idoso em busca de companhia humana. Mesmo aqui, na fase mais tardia da sua carreira, a paixão de Kiarostami pelo fascinante mistério e beleza da condição humana continuava tão intenso como durante as filmagens das suas primeiras curtas sobre a vida de jovens iranianos nos anos 70.
2016 tem sido um ano difícil no que diz respeito a perdas artísticas e culturais e Kiarostami é mais um nome numa lista que continua a crescer. No entanto, cada um desses nomes tem valor e não deveria ser banalizado ou esquecido, e isso inclui Abbas Kiarostami. Ele foi um verdadeiro poeta, filósofo, artista e humanista do cinema e tanto a sétima arte como o mundo perderam algo incomensurável com a sua morte.