Relatos Selvagens, em análise
Já cansam os mesmos argumentos. Mesmo que não se queira exprimi-lo. Ou, pelo menos, desta forma. Mesmo que, conformada, a multidão siga, como uma invasão de ‘zombies’, em direcção ao objectivo último: abocanhar uma projecção, igual às anteriores, sem novidade e ambição.
Damián Szifrón, com este Relatos Selvagens, não deixou argentinos nem espanhóis envergonhados da sua capacidade para contar histórias. Bem pelo contrário. Com o cérebro criativo de Pedro Almodóvar na produção, a genial e excêntrica película indicada pela Argentina para integrar a corrida ao Óscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, foi senhora da sessão de abertura da Mostra de Cinema da América Latina.
E, incrédula e selvaticamente, arrancava aplausos a meio do filme, tal era o preenchimento do público que se fez deslocar ao São Jorge.
A começar por um mal-amado piloto de avião cuja sede de vingança se traduz num brilhante ajuntamento das personalidades da sua vida, até ao casamento defraudado pelo noivo infiel, com consequências inimagináveis, passando pelos reboques de um veículo cujo proprietário não se resigna às regras sem sentido de uma sociedade injusta, este conjunto de seis histórias conecta-se a quem as visualiza.
Com efeito, o denominador comum reside na perda de controlo, naquele ponto em que o limite é atingido ou, em última instância, todo o sentido de equilíbrio emocional desaparece. No entanto, nalguns relatos, estes componentes surgem mais condensados e intensos.
O brilhantismo daquele duelo de estrada, no segmento “El más fuerte” (Leonardo Sbaraglia/Walter Donado) – ou do que poderá gerar um simples insulto entre dois condutores -, ao som de “Lady, lady, lady”, num crescendo de raiva e violência, e que, afinal, também tem laivos de humor negro e um ambiente próprio de Tarantino e Rodriguez, é um stand-by à monotonia das realizações habituais.
A explosão nubente de Romina (Erica Rivas) no segmento “Hasta que la muerte nos separe” é um hino à emotividade que caracteriza o género feminino, mas sem deixar de lembrar que esta aparente fragilidade se poderá traduzir numa inteligência inesperada. Fundamental e literalmente catastrófica.
Acima de tudo – e foi nisto que D. Szifrón soube jogar -, foi a abertura para a auto-identificação. Quem não se visualiza em personagens cuja paciência tem os minutos contados, numa sociedade sem moral, princípios, justiça, compreensão emocional, tolerância?
A pesar na equação do engenho desta comédia dramática – tendo sido, porventura, também nisto que D. Szifrón terá impressionado Cannes -, encontra-se aquela sensação de solidariedade com a vingança alheia, obviamente mais presente em segmentos com situações próximas da realidade.
E como é enfrentar este inimigo que é a falta de paciência, em casos de gravidade acentuada? Será que só trará angústia e um futuro fechado e sombrio? Ou, contra todas as expectativas, alguma mudança para melhor surgirá desta rebelião?
A resposta a estas questões poderá ser incerta ou variar de caso para caso. Contudo, existe algo de inegável nesta análise. Quanto mais acima estiverem os escalões da maturidade e auto-conhecimento, mais fácil será aceitar e entender os nossos comportamentos menos ortodoxos.
Consta que somos humanos. Individuais. Únicos.
Sofia Melo Esteves
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