A Volta ao Mundo em 80 Filmes | Parte X
Neste último capítulo da nossa volta ao mundo, visitamos o cinema do mais importante autor taiwanês e exploramos vários documentários de importância social, política e estética.
<< Parte IX
TAIWAN
A Cidade da Dor (1989) de Hou Hsiao-hsien
Enquanto a maior parte dos grandes cineastas se podem caracterizar e analisar pelo que mostram no ecrã, Hou Hsiao-hsien é o bizarro exemplo de um génio que constrói as suas experiências fílmicas com base no que não mostra às suas audiências. Os seus filmes são obras que vivem no vazio das composições, na quietude entre movimentos, no silêncio que separa as palavras e no que se perde quando um plano corta para outro. Isso raramente é mais explícito ou elegante que na sua primeira inegável obra-prima, A Cidade da Dor, onde o visionário taiwanês conta a história de uma família e sua implosão durante os primeiros anos do Terror Branco. Este filme foi aliás, a primeira obra de cinema a lidar com essa período histórico do Taiwan, tendo sido completo dois anos após o fim do regime ditatorial que ilegalizava a sua representação. Cristalizando os dilemas de uma identidade nacional indefinida e explorando as inúmeras maneiras como o peso da história afeta a vida humana, Hou Hsiao-hsien como que encapsulou os principais temas do seu cinema nacional numa só obra que, apesar disso, é um produto indiscutível do seu inovador estilo cinematográfico.
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TANZÂNIA
These Hands (1992) de Flora M’mbugu-Schelling
Com apenas 45 minutos, These Hands é o filme mais curto em toda esta volta ao mundo, mas a sua brevidade não implica nenhuma falta de qualidade. Não se medem pessoas aos palmos e não se medem filmes aos minutos e isso nunca é mais claro que nesta obra documental, onde a maior parte da duração é focada numa observação do trabalho árduo de um grupo de mulheres que passam os seus dias a partir pedra de modo a criar gravilha para uso industrial. Mais de metade do filme se passa sem praticamente nada acontecer a não ser esse lavoro – estamos a testemunhar uma realidade aborrecida e repetitiva onde o esforço físico é palpável nas imagens áridas. No entanto, perto do fim do filme uma das mulheres dança, outra acompanha-a e depois voltam ao trabalho, vemos uma rápida refeição e depois temos o único momento de informação do filme. Essa coda expositiva é um dos mais estupendos golpes de génio imagináveis, pegando na estrutura precisa do projeto e pontuando-o com uma violência sóbria e impactante onde nos é exposto como, no contexto da sociedade local, estas mulheres são privilegiadas. Curto, elegante e poderoso, este é um filme assombroso.
TURQUIA
Era Uma Vez na Anatólia (2011) de Nuri Bilge Ceylan
Algures nos ambientes rurais das estepes turcas, há um cadáver que foi enterrado junto a uma árvore e um grupo de polícias está à sua procura com o auxílio de um dos homens envolvidos no misterioso homicídio. Esta premissa narrativa parece ser a base perfeita para um thriller policial clássico, mas basta vislumbrarmos quem realizou Era Uma Vez na Anatólia para sabermos imediatamente que este filme não pode ser nada desse género padronizado. A partir das suas usuais experimentações formais e estudos filosóficos, Nuri Bilge Ceylan construiu uma lancinante exploração sobre a moralidade humana onde os diálogos são explícitos ao ponto de serem literários, e onde paisagem noturna rasgada pelas luzes dos automóveis policiais contém tanta importância concetual como o mais complexo monólogo (e há bastantes neste filme). A precisão demonstrada neste projeto só poderia vir das mãos de um grande mestre de cinema, mas as suas considerações morais e existenciais têm a marca de um grande filósofo. Para todos os que dizem que um livro será sempre mais complexo e cheio de ideias que um filme, mostrem-lhe Era Uma Vez na Anatólia e expandam os horizontes desse infeliz.
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UCRÂNIA
A Terra (1930) de Aleksandr Dovzhenko
A teoria da montagem soviética é um dos mais importantes desenvolvimentos na história do cinema, mas há que reconhecer como, apesar da sua excelência mecânica e formal, muitos dos gloriosos filmes mudos soviéticos são fragilizados pelas exigências de um regime somente em busca de objetos propagandistas. Um dos mais formidáveis espetáculos dessas teorias postas em prática, e que consegue contornar os mais perniciosos impulsos panfletários, é A Terra, parte da trilogia ucraniana do cineasta Aleksandr Dovzhenko e a sua magnum opus. Não que este seja um filme subversivo face aos ideias soviéticos, sendo a sua história focada numa comunidade de agricultores que recorrem ao comunismo para melhorarem as suas vidas e ganharem autonomia. O que difere o filme das outras obras da época e o coloca no cânone dos melhores feitos cinematográficos de sempre é a sua exaltação sensual da união entre o homem e a terra, algo que chega à sua alucinante apoteose nos minutos finais. Diferenciar as nacionalidades modernas de filmes soviéticos é uma tarefa complicada, mas A Terra é praticamente uma carta de amor à Ucrânia, garantindo assim o seu lugar na nossa volta ao mundo.
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UGANDA
Call Me Kuchu (2012) de Malika Zouhali-Worrall e Katherine Fairfax Wright
Alguns documentários são valiosos pela sua qualidade estética e intelectual, enquanto outros são valorizados quase exclusivamente como obras de jornalismo. Call Me Kuchu pertence ao segundo grupo e é caracterizado por uma urgência tão acutilante que depois de o vermos quase temos vontade de forçar todas as pessoas que conhecemos a o fazerem também, pelo simples facto de que estas informações deviam ser sabidas por todos. Não que as legislações e persecução anti-LGBT no Uganda não tenham já aparecido nos telejornais de todo o mundo, é claro, mas há uma grande diferença entre uma manchete rápida e o tipo de proximidade que este filme estabelece com os seus sujeitos humanos. Basta vermos como o “protagonista” do filme, o ativista David Kato, é assassinado para percebermos o risco que está a ser tomado por todos os que aparecem diante da câmara e por isso todo o projeto ganha uma qualidade ainda mais vital, como um documento de vidas que talvez já tenham sido extinguidas pelos ventos de violência e preconceito. Este filme é um desconfortável abrir dos olhos a uma situação infernal e injusta, mas é também uma experiência necessária e importante.
URUGUAI
La Casa Muda (2010) de Gustavo Hernández
Filmado para ter a aparência de um take contínuo de 79 minutos, La Casa Muda é um dos mais aventurosos exemplos do cinema de terror da América Latina que tem vindo a ganhar relevância nos últimos anos. Essa já mencionada abordagem pouco ortodoxa injeta em todo o projeto uma atmosfera de claustrofobia peculiar, onde o implacável movimento da câmara e a recusa da montagem se tornam agressões contra a audiência. Mas do que trata este filme de técnica tão vistosa? Bem, o seu enredo é tão simples que poderia ser de um filme de classe B dos anos 40: Laura está a visitar uma casa com o seu pai, a meio da sua exploração ela começa a ver coisas estranhas e sentir que algo está errado, no entanto as suas várias tentativas de sair da habitação são interrompidas e ela vai-se apercebendo que está enclausurada no seu interior. Há que dizer, este não é um filme que se veja em busca de competência narrativa. É, por outro lado, uma maravilhosa mostra de coragem cinematográfica, de uma estética de terror baseada no realismo pervertido pela subversão formal e com uma prestação de sublime histeria e pânico como seu centro humano.
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VENEZUELA
Araya (1959) de Margot Benacerraf
A arte de encontrar lirismo nas durezas da vida de populações empobrecidas é um marco incontornável no cânone do cinema internacional, desde as explorações do nobre proletariado na União Soviética, passando pelo neorrealismo italiano e chegando a obras do Terceiro Cinema como Araya da cineasta Margot Benacerraf. Na península titular, situada na Venezuela, é retratado o quotidiano de três famílias que trabalham nos salineiros locais, seguindo as técnicas que se têm mantido inalteradas há séculos. Sob o olho astuto de Benacerraf as paisagens da ilha são filmados em sublime preto-e-branco, onde pirâmides de sal branco contrastam com a cinza do céu em paisagens pintadas pelas pinceladas de movimento humano que por elas passa. A poesia dessas pinturas vivas é inegável, mas o que realmente eleva este filme ao panteão do cinema venezuelano é o modo como, na sua observação, Benacerraf criou um retrato precioso de uma população que vive a partir de tradições que estão prestes a se tornarem obsoletas com a chegada da indústria moderna. Este é o ultimo suspiro de uma cultura ancestral antes da sua aniquilação e merece ser preservado e celebrado como a rara joia que é.
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VIETNAME
Cyclo (1995) de Tran Anh Hung
Filmes sobre jovens protagonistas masculinos que se envolvem num submundo de crime e assim constituem uma narrativa sobre a perda de inocência há-os aos pontapés. Dizemos isto para clarificar que Cyclo não deve a sua majestosa qualidade a um enredo original, mas sim a uma espetacular execução. Tran Anh Hung conjura uma visão rica em ambiguidade e abstração que é regida pelo realismo mágico e prima em momentos de pura beleza estética. O resultado final é uma experiência de imersão cinematográfica que subverte um argumento com tendências melodramáticas e o torna num verdadeiro triunfo de cinema enquanto máquina de impulsos sensoriais. Esta é uma abordagem que ainda hoje parece inovadora e quase revolucionária, mas nada disso implica, temos que sublinhar, que a história humana de um adolescente, sua irmã e o criminoso que os seduz a uma vida de crime, não é negligenciada mas sim valorizada pelos devaneios estilísticos em evidência. A cereja no topo do bolo é a prestação de Tony Leung como o Poeta – ele é um dos melhores atores do cinema asiático e aqui ele volta a provar a sua extraordinária excelência, elevando todo o elemento humano do projeto.
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E assim termina a nossa volta ao mundo em 80 filmes. Tal como é apontado na introdução desta aventura, os títulos aqui presentes são recomendações de possíveis introduções a cinemas nacionais. Boa sorte nas tuas futuras explorações pelas maravilhas do cinema internacional!