74º Festival de Cannes | O ‘Marinheiro das Montanhas’
Depois do documentário ‘Argelino por Acidente’ (2019) o realizador brasileiro Karim Aïnouz [A Vida Invisível (de Eurídice Gusmão] voltou a Argélia para filmar, ‘Marinheiro das Montanhas’ um lindíssimo ensaio autobiográfico em forma de road movie, em que busca de suas raízes argelinas, mas também em parte ainda sobre o legado da luta pela independência, contra o domínio colonial francês.
Para explicar este ‘Marinheiro das Montanhas’ torna-se necessário dar alguns aspectos biográficos de Karim Aïnouz, que começou a ser reconhecido pela estreia em Portugal do seu ‘Madame Satã’ (2002) e recentemente pelo sucesso (sempre relativo para filmes independentes) de ‘A Vida Invísivel’, um filme com fortes ligações ao nosso país. Cineasta e artista visual brasileiro, nascido em 1966 em Fortaleza, Karim Aïnouz é filho de mãe brasileira e pai argelino nascido numa pequena aldeia perto da cidade de Cabília (na região montanhosa no norte da Argélia). Com formação em arquitetura e fotografia, Karim Aïnouz cresceu no Brasil, morou três anos em França, depois em Nova Iorque, antes de se estabelecer nos últimos anos, em Berlim. Aos 55 anos, Karim Aïnouz fez esta um longa-metragem documental, intitulada ‘Marinheiro das Montanhas’, como um dever de memória, no qual faz uma espécie de inventário emocional sobre a sua própria vida. O ‘Marinheiro das Montanhas, segue os passos dos seus pais, documentando a história de amor e a separação da brasileira Iracema e do argelino Madjid em 1965; desde o seu caso de amor que começa nos EUA, onde estavam como bolseiros e se casaram; e os dias felizes de que ainda restavam, numa caixa de slides, até à única viagem de Madjid à Argélia, para não mais se voltarem a ver. Iracema voltou para Fortaleza sozinha e grávida. Karim Aïnouz cresceu sem o pai, até aos 18 anos quando foi encontrá-lo em Paris, na esplanada de um café, sem terem nada para dizer um ao outro. O pai, engenheiro de profissão, tem agora com 80 anos vive em Paris, casou-se com uma argelina e tem uma filha: curiosamente a irmã de Karim, é a cineasta Kamir Aïnouz, realizadora de ‘Cigare au miel’ (2020). A mãe de Karim, bióloga, nunca se casou novamente e faleceu há cinco anos. O filme também evoca a guerra de independência argelina, as lembranças da infância e os contrastes entre as cidades de Cabília de seu pai e Fortaleza, terra natal do cineasta e de sua mãe, Iracema.
Em maio passado o cineasta confidenciava em entrevista: Peguei um barco em Marselha e me vi na Argélia, na aldeia de onde vem meu pai, que é uma região montanhosa, onde neva. Minha mãe faleceu em 2015, mas ela me acompanha nessa jornada como uma espécie de companheira imaginária. Filmei toda a viagem, construindo um filme (…) tão íntimo e pessoal (…). O filme é narrado pelo próprio Karim, que lê como que fosse uma carta escrita, para a sua mãe, já falecida, transformando-a assim na sua companheira imaginária de viagem, primeiro vagueando pelas ruas de Argel, a capital e depois por Cabília, ao encontro de pessoas desconhecidas e lugares comuns. Ao mesmo tempo, o cineasta vai relatando e comentando episódios essa jornada, (que aparentemente fez sozinho), reactivando as suas memórias pessoais e familiares, revelando os muitos sentimentos contraditórios, que marcam o seu percurso e da sua família; e também à procura as suas raízes, no contacto com as pessoas e com vontade de manter presentes essas tradições, como é o caso da belíssima lenda (e das imagens que a ilustram) da criação da aldeia natal do pai, contada pela Inês, a sua jovem parente. Assim entre registros da viagem, filmagens caseiras, fotografias de família e actuais, arquivos históricos e excertos de filme em super-8, o ‘Marinheiro das Montanhas’ faz um fina narrativa, (a montagem é extraordinária) entre a história de amor dos pais, a Guerra de Independência Argelina, as memórias de infância e os mais variados contrastes entre as cidades de Cabília (Argélia) e Fortaleza, cidade natal de Karim e da sua mãe, Iracema. O cineasta trata-a quase como a figura da lenda do Ceará, que inspirou o romance de José de Alencar, e que uma vez quando era pequeno a mãe lhe contou, em vez de contar a verdade sobre o pai. Atenção também à notável e cuidada banda-sonora, que acompanha a sucessiva e por vezes inesperada sucessão de imagens de cores fortes e a conversa suave com as pessoas. Enfim ‘Marinheiro das Montanhas’ é um dos melhores filmes do Festival, apresentado fora da competição, calorosamente aplaudido na sessão oficial e com um longo discurso do cineasta pela defesa da democracia, da liberdade e do cinema brasileiro. Após isso, os artistas brasileiros presentes, fizeram um protesto contra o governo de Jair Bolsonaro, e a sua indiferença perante as milhares de vítimas da Covid-19, do alto da passadeira vermelha.
JVM