75º Festival de Cannes | ‘Nostalgia’
O realizador italiano Mario Martone, regressa a Nápoles em ‘Nostalgia’ e aos meandros do passado e da memória, para contar a história de um homem que 40 anos depois volta o seu bairro, para acertar umas contas da sua juventude. Uma viagem onde o previsível rapidamente se transforma numa misteriosa história.
Revelado internacionalmente no circuito de festivais, sobretudo com ‘Morte de um Matemático Napolitano’ (1992), seguindo-se filmes marcantes como ‘Teatro de Guerra’ (1998), ‘O Odor do Sangue’ (2004); quando saímos de Lisboa estava em cartaz, o seu último e notável ‘O Rei do Riso’ (2021), o realizador italiano Mario Martone (62 anos) tem mostrado um cinema que é marcado por um profundo humanismo e fragilidade das suas personagens. Mas também, por um certo gosto pela tragédia, encenada sempre com uma austeridade, que vale a pena destacar, porque tem sido uma constante na sua obra. Talvez devido ao inicio da sua carreira, como homem do teatro no famoso Teatri Uniti — também de Toni Servillo. O regresso a Nápoles das suas personagens, — há mais do que um nos seus filmes — traz sempre com elas, a morte, as memórias, o passado, a violência trágica, que são temas recorrentes nos seus filmes, vindo-me logo à cabeça aquele professor alcoólatra e suicida do referido, ‘A Morte de Um Matemático Napolitano’.
Este ’Nostalgia’ abre logo com uma citação de um outro ‘herói trágico’, chamado, Pier Paolo Pasolini: ‘O conhecimento está na nostalgia. Quem não está perdido não se conhece a si mesmo’. Mas começa efectivamente, com o regresso num voo das Arábias, de um homem taciturno, à sua cidade natal Nápoles: Felice Lasco, brilhantemente interpretado pelo formidável actor italiano Pierfrancesco Favino, altamente consagrado por ‘O Traidor’ (2019), de Marco Bellocchio e também por ‘Suburra’,(2015), o filme de Stefano Sollima. Favino arranca uma das melhores interpretações da sua carreira e é um forte candidato a um prémio na categoria, até agora na Competição. Rapidamente apercebemo-nos que esse misterioso personagem, fez fortuna como empresário no Egito, que há uma bela mulher egípcia, esperando por ele, que se converteu ao Islão e que não vai a Itália, há mais de quarenta anos. O motivo dessa ausência é precisamente o tema central do filme. Voltando ao início, o filme começa de uma forma muito suave, com os últimos dias da velha mãe de Felice, que ele trata com muito cuidado, mas que morrerá rapidamente nos seus braços, devido à idade e doença.
VÊ TRAILER DE ‘NOSTALGIA‘
Na verdade, Felice regressa, ao seu bairro natal, para acertar umas contas antigas, tanto consigo próprio, quanto com uma sua juventude ligada à delinquência. Primeiro aproxima-se do Padre Luigi (Francesco Di Leva) um combatente, desse bairro de Sanita, que luta na sua paróquia, contra a influência da Camorra, sobre os jovens mais desfavorecidos; e que auxiliou a mãe de Felice, na velhice. Felice aos poucos vai-se abrindo com o padre das razões do seu retorno às origens. A partir daqui, o filme transforma-se num mistério puro e intenso, localizado num antigo cemitério e numas das catacumbas de Nápoles, que se tornou uma área popular e desfavorecida, onde a morte luta com a vida diariamente, — faz lembrar as favelas do Rio de Janeiro. Felice pretende encontrar-se com um velho amigo da adolescência, com que havia dado vários golpes, conduzindo uma motorizada a alta velocidade, pelas ruas estreitas do bairro. Um assalto transformou-se mesmo num assassinato.
E os dois amigos nunca mais se viram, pois Felice, safou-se, sendo enviado pelo tio para o o Líbano, no Oriente Médio, para trabalhar na construção civil e onde terá feito fortuna. No entanto, parece que o regresso de Felice, coloca em risco Oreste Spasiano (Tommaso Ragno), o homem que se tornou no ‘dono do bairro’, um mafioso ultra-violento que reina o terror e leva os jovens para maus caminhos. Depois de alguns incidentes, Felice, é aconselhado a partir, mas sobrepõe-se-lhe a vontade de encontrar o amigo, acertar as contas de sua própria vida e retomar o curso do seu destino, ficando em princípio por Nápoles. Intercalando, os seus atores com a população local, Martone filma incrivelmente as ruas escuras e estreitas, em boa parte seguindo as pegadas da Camorra, no Sanita, numa história cheia de reviravolta, onde as magnificas e fúnebres localizações, marcam uma espécie de geografia espiritual e o destino final do seu protagonista Felice. Um filmaço!
JVM, em Cannes