Opinião | Ingmar Bergman: O Centenário do Senhor Testosterona
As comemorações do nascimento de Ingmar Bergman culminam com a estreia do documentário ‘Bergman—Um Ano, Uma Vida’, de Jane Magnusson e do ciclo Centenário do Nascimento, no Espaço Nimas em Lisboa e depois segue pelo País. Daqui a 11 anos há mais!
Que representavam as mulheres para um homem que se envolveu com tantas, casou várias vezes, mas nunca teve conflitos com nenhuma das suas ex-companheiras ou amantes? Algo foi revelado nestas comemorações do centenário do nascimento de Ingmar Bergman, (nasceu em Upsala a 14 de Julho de 1914 e morreu em 30 de julho de 2007, na ilha de Fårö, Suécia), cuja a obra do realizador tem sido permanentemente revisitada, estudada, analisada, comentada e até memorizada através do cinema documental. Foi tema por exemplo, de dois excelentes documentários que chegaram recentemente às salas portuguesas. O primeiro intitulado ‘Ingmar Bergman – A Vida e Obra do Génio’, da reconhecida e premiada realizadora alemã Margarethe von Trotta, estreado em outubro passado. Este filme observava de perto a vida e a obra de Bergman e o seu legado cinematográfico, a partir dos seus colaboradores mais próximos, familiares, e de uma nova geração de realizadores que acabou por receber as suas inspiradoras influências e conhecimentos.
‘Bergman—Um Ano, Uma Vida’, de Jane Magnusson, — Prémio do Cinema Europeu, na categoria de Documentário — vai muito mais longe ao retratar a relação deste enorme diretor teatral, dramaturgo e realizador, aprofundando temas mais misteriosos e sombrios sobre a sua personalidade e sobretudo sobre a sua controversa relação com universo feminino, que paradoxalmente não deixa de ter excelentes resultados nos seus filmes.
TRAILER | ‘BERGMAN: VIDA E OBRA DE UM GÉNIO’
O documentário ‘Bergman – Um Ano, Uma Vida’, atravessa e foca-se no ano de 1957, quando o jovem realizador de 33 anos, já tinha seis filhos (ou seriam cinco?). E neste filme há uma imagem de época marcante, com ele no set de rodagem de ‘Morangos Silvestres’, em que mostra Bergman na sua plenitude e numa postura imersa de auto-confiança, — uma espécie de Sr. Testosterona, — uma atitude que reflete em si os seu modos vivendi nesse preciso ano, em relação aos seus colaboradores e principalmente em relação às suas mulheres e às suas actrizes. Talvez isso fosse hoje um excelente motivo de escândalo que encheria certamente as páginas dos media convencionais e das redes sociais, e quem sabe até um bom motivo de denúncia do movimento #MeToo.
TRAILER | ‘BERGMAN: UM ANO, UMA VIDA’
No entanto, nessa altura vivia-se na Suécia, a era libertária dos anos 50, antecipando os movimentos sociais dos anos 60 e os ideais de amor livre na Europa e nos EUA. Por essa altura já Ingmar Bergman tinha realizado ‘Mónica e o Desejo’, um grande filme que ‘despertou’ a cabeça de muitos realizadores no mundo e sobretudo de um tal Jean-Luc Godard. E esse ano de 1957 da vida de Ingmar Bergman foi um verdadeiro reboliço criativo-sentimental: uma mulher grávida, outra amamentando e uma terceira com seu bebé gatinhando.
Três filmes, e dois representam duas obras-primas, ‘Sétimo Selo’ e ‘Morangos Silvestres’. Três ou quatro montagens teatrais consideradas definitivas e incontornáveis na sua obra, que incluíam ‘O Misantropo’, de Molière e ‘Peer Gynt’, de Henrik Ibsen, esta com a duração de cerca de cinco horas. E ainda a realização de uma série de televisão que não lhe está creditada. Absolutamente incrível! Nas artes em geral e no teatro em particular existem apelidos que identificam ícones e génios criativos de diferentes épocas: Molière, Racine, Shakespeare por exemplo. No cinema Bergman é uma dessas personalidades. (Federico) Fellini é por exemplo outra. E ambos tornaram-se quase emblemáticos adjetivos para estabelecer comparações, géneros, estilos e até comportamentos: bergmaniano, felliniano. E neste caso, o primeiro representa algo mais grave e soturno, ao passo que o outro, tornou-se mais feérico e fantasista.
Ingmar Bergman deixou um enorme legado artístico, mas foi igualmente um verdadeiro, ‘homem que amava as mulheres’, comparável ao protagonista do filme de François Truffaut (1978), com o mesmo título. Só que Bergman, parecia não as entender na sua plenitude e aí está o mistério dos seus filmes. Bergman, fez igualmente, nos anos 50, grandes filmes que investigavam sem reservas o universo masculino. Mas o ano de 1957 foi pode-se dizer o mais emblemático da sua carreira de cineasta.
Em ‘O Sétimo Selo’ e ‘Morangos Silvestres’ expôs as suas dúvidas religiosas, existenciais, e tantos outros conflitos interiores, que representavam uma geração do pós-guerra. No começo dos anos 60, criou a famosa trilogia sobre o silêncio de Deus – ‘Em Busca da Verdade’, ‘Luz de Inverno’ e ‘O Silêncio’. Em 1963, voltou novamente com um filme que tem um título revelador sobre a sua maneira muito particular de falar das mulheres: ‘A Máscara’ (Persona). E daí para a frente passou o resto da década, e uma boa parte dos anos 70 e 80, falando delas, das mulheres obviamente!
PROMO DE ‘A MEIO DA NOITE’, DE OLGA RORIZ
Para culminar este ano do centenário do nascimento de um maiores artistas do século XX — duvido que esta evocação tenha passado ao lado das pessoas que amam realmente o cinema — vem aí mais uma oportunidade de celebração e memória. A Leopardo Filmes e a Medeia Filmes, de Paulo Branco — não esquecer sempre a incansável colaboração do programador António M. Costa — prepararam um excelente programa de homenagem ao realizador, escritor, dramaturgo e encenador que vai decorrer até ao dia 2 de Janeiro no Espaço Nimas, em Lisboa, passando depois também no Porto, Braga, Coimbra e Setúbal. Serão apresentados cerca de 23 filmes dos mais belos de Ingmar Bergman, quase todos em cópias digitais restauradas, complementados com a estreia em exclusivo do documentário de Jane Magnusson, ‘Bergman – Um Ano, Uma Vida’, que venceu o prémio Melhor Documentário Europeu, depois de ter tido a sua estreia mundial na última edição do Festival de Cannes. Segue-se à projecção deste filme, na quarta-feira, 2 de Janeiro, às 19h00, no Espaço Nimas, um debate com os escritores Maria Quintans, Nuno Júdice e Ricardo Marques, além da coreógrafa e bailarina Olga Roriz que, este ano, criou o espectáculo ‘A Meio da Noite’, uma extraordinária homenagem ao realizador e, simultaneamente, uma peça sobre o processo de criação numa procura incessante de si próprio e dos outros, segundo as palavras da criadora.
José Vieira Mendes