"Judy" | © Outsider

Judy, em análise

Renée Zellweger está na senda do segundo Óscar com a sua interpretação da lendária Judy Garland em “Judy” de Rupert Goold.

De 1939 a 1948, todos os filmes em que Judy Garland entrou fizeram lucro e quase todos eles acabaram no Top 10 do box office anual. Ela começou a atuar quando ainda usava fraldas, sendo filha de estrelas de vaudeville e portadora de uma voz poderosa que era tão mais impressionante por provir de um corpo tão diminuto. Ela era uma estrela de um calibre que já não existe e, além de tudo isso, era uma fabulosa atriz dramática, capaz de usar as técnicas artificiais da Velha Hollywood e delas fazer florescer epítetos de lacerante naturalismo emocional. No entanto, tal talento e tal lucro não vieram do nada e Judy passou a vida a ser manipulada pelos estúdios da MGM que inclusive a viciaram em comprimidos de dieta e narcóticos.

No fim dos anos 60, quando, incapaz de assegurar trabalho nos EUA, ela viajou até ao outro lado do Atlântico. Em Londres, os seus concertos esgotaram na totalidade e, apesar da sua má reputação em círculos profissionais, ninguém ousou questionar a sua capacidade para dar espetáculo e maravilhar o espectador. Seis meses depois de tais triunfos, Judy Garland morreu, com 47 anos, e o mundo chorou. Na mesma noite do funeral, a luta pelos direitos da comunidade LGBT+ explodiu em Nova Iorque com os motins de Stonewall e, um ano depois, a sua filha Liza Minnelli viria a seguir o legado da mãe, conquistando uma nomeação para os Óscares.

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“Judy” foca-se nesses espetáculos londrinos e oferece pouco contexto para que o espectador desinformado se aperceba da magnitude do talento e celebridade de Judy Garland. Afinal, quem não conhecer o seu legado, dificilmente vai entender como é que ela era ainda tão popular 30 anos depois do seu maior triunfo. O realizador Ruper Goold e o argumentista Tom Edge lá entrecortam a ação principal com flashbacks para 1939, mas esses instantes nunca parecem mais que perfunctórios e pouco fazem para justificar o estatuto lendário, mas desgraçado, da Judy Garland de 1969. Em suma, este é um filme feito por fãs e para fãs de Judy, sendo um tanto ou quanto insular e limitado quando avaliado fora desse paradigma de audiência ideal.

Os cineastas basearam-se na peça “End of the Rainbow” de Peter Quilter, mas expandiram-na ao mesmo tempo que limaram as suas arestas vivas. Enquanto a Judy da peça original é uma figura extremamente complicada, uma vítima de um sistema injusto que descarrega o seu sofrimento nos que a rodeiam, a Judy do filme é uma santa martirizada. Longe do elenco diminuto do espetáculo da Broadway, a cinebiografia enche a cena de personagens secundárias, incluindo até umas versões infantilizados dos filhos mais novos da estrela. Tudo é feito para diluir a qualidade abrasiva do texto, resultando numa elegia chorosa e necessariamente simples, unidimensional e de fácil consumo.

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Parte da adaptação passou pela aniquilação de qualquer estrutura dramatúrgica. Não fosse o modo como o filme segue todas as convenções mais batidas da cinebiografia musical, a sua falta de foco poderia ser quase considerada um gesto arrojado. Há concertos e há os flashbacks desconexos, há diálogos impossíveis com visitantes inusitados e há também uma série de crises emocionais e telefonemas lacrimosos. Tirando isso, nada orienta a narrativa do filme ou lhe dá uma forma. De certo modo, estamos perante um estudo de personagem que, ao invés de estudar a personagem, se limita a observá-la. Assim, “Judy” apoia-se totalmente na prestação da sua atriz principal, que é tanto a maior mais-valia como o maior problema do filme.

Já muito se fala de Renée Zellweger estar a caminho do segundo Óscar e, de facto, o seu desempenho em “Judy” impressiona. Ela é um caco humano, cheio de tiques e trejeitos estudados mimeticamente da figura histórica. Nesse sentido, trata-se de uma admirável imitação, uma espécie de ressuscitação de Judy Garland nos seus piores momentos, quando o seu instrumento vacilava e as emoções mais negras já não se conseguiam esconder por detrás de um sorriso glamouroso. Apesar de tudo isso, Zellweger não se subsume a si mesma e à sua persona, sendo que a performance é mais uma evocação de Judy que uma exata fotocópia. Em muitas instâncias, isso funciona, mas em várias passagens cruciais os limites do trabalho da atriz provam ser bem debilitantes.

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Por muito que Zellweger tente, a sua voz não se parece, de todo, com a de Garland. Em inúmeras cinebiografias isso não seria um grande problema, mas “Judy” centra-se irrevogavelmente nos dotes vocais da sua heroína. Quando Garland finalmente canta, é difícil para o espectador averiguar se se trata de um sucesso ou não, pois os esforços canoros de Zellweger são tão fracos em comparação com a glória da imortal Dorothy Gale. Não é que ela cante mal, trata-se simplesmente de um registo vocal diferente, mais limpo e menos poderoso. Mesmos nos seus tempos mais degradados, Judy Garland conseguia rugir notas impressionantes e injetar emoção calcinante nos seus números, sendo que o esforço sentido nas suas cordas vocais só coloria mais a canção.

Em certa medida, o sofrimento dela dava mais valor ao talento vocal, por muito perversa que tal ideia possa ser. Essa dinâmica entre tragédia pessoal e valor artístico é transversal a todo o filme, mas nunca é explorado com devido olho crítico ou intuito construtivo. Tudo se reduz à admiração estéril, à observação passiva da lenda que tanto sofreu e assim só reforçou o seu estatuto lendário. Há valor em “Judy” e não nos admiraríamos que muitos espectadores saíssem da sala lavados em lágrimas. Contudo, a emoção visceral e o sentimentalismo não são grandes indicadores de grande cinema, neste caso. Se Zellweger realmente conquistar o Óscar por este trabalho, tratar-se-á de uma escolha infeliz da Academia que, no cúmulo da ironia, nunca reconheceu a verdadeira Judy Garland com o galardão de Melhor Atriz que ela tantas vezes mereceu.

Judy, em análise
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Movie title: Judy

Date published: 12 de October de 2019

Director(s): Rupert Goold

Actor(s): Renée Zellweger, Jessie Buckley, Finn Witrock, Michael Gambon, Rufus Sewell, Gemma-Leah Devereux, Bella Ramsay, Andy Nyman, Darci Shaw

Genre: Biografia, Drama, História, 2019, 118 min

  • Cláudio Alves - 55
  • Maggie Silva - 70
63

CONCLUSÃO:

Tal como a verdadeira Judy Garland, esta cinebiografia faz chorar, mas também exige aplausos. Em termos de sentimento puro, este é um exercício com valor. Contudo, enquanto um retrato de uma figura histórica é muito limitado e a escolha de não usar a voz da estrela original é um tiro na culatra para os cineastas. Renée Zellweger é estupenda a interpretar uma toxicodependente desesperada e anónima, mas as especificidades vocais de Garland escapam-lhe.

O MELHOR: Apesar dos seus limites vocais, os momentos musicais são os pontos altos do filme. Zellweger atua as canções com pulsante intensidade, o realizador sabe filmar cada número com uma linguagem visual diferente e os figurinos de Jany Temime brilham gloriosamente no ecrã.

O PIOR: Os flashbacks que conseguem ser simultaneamente desnecessários e terrivelmente incompletos.

CA

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