Tenho Sonhos Elétricos, em análise
A realizadora costarriquenha Valentina Maurel estreou-se nas longas-metragens com o filme ‘Tenho Sonhos Eléctricos’, uma perturbadora crónica de família, protagonizada por uma jovem adolescente, que quer crescer e amadurecer (talvez) demasiado depressa. Em cartaz nas salas de cinema e um filme absolutamente a não perder!
Premiada pelas suas curtas-metragens ‘Paul is here’ (ganhou o Prémio Cinéfondation do Festival de Cannes 2017) e ‘Lucia in Limbo’ (selecionada para a Semana da Crítica também do Festival de Cannes 2019), a costarriquenha Valentina Maurel afirma-se agora com brilhantismo com esta sua primeira longa-metragem, intitulada ‘Tenho Sonhos Eléctricos’, que teve estreia absoluta no último verão na Competição do Festival de Locarno 2021.
O filme dá, de certo modo, continuidade ao tema dos seus filmes anteriores, voltando-se de novo para as problemáticas da adolescência: o despertar sensual e sexual de uma jovem em ‘Lucia in Limbo’ (2019), por exemplo, foram explorados de uma forma graciosa e directa. Desta vez em ‘Tenho Sonhos Elétricos’, reflete no mesmo tema, mas antes de uma forma bastante mais perturbadora, sobre um estranho — que não anda longe mesmo, de uma história de complexo de Electra — relacionamento entre Eva (a extraordinária estreante Daniela Marín Navarro), uma expressiva jovem adolescente e o seu pai Palomo (Reinaldo Amien), à primeira vista uma espécie de artista falhado. Eva não suporta mais viver com a sua mãe (Vivian Rodriguez), que decidiu reformar a casa da família, depois do divórcio, procurando sem grande resultado, por uma pedra no passado. Ávida por liberdade, Eva age com um doloroso diletantismo na hora de dar estabilidade à mãe, pelo contrário parece culpá-la da separação. Assim é um gato preto,— um quinto membro e partilhado com a irmã mais pequena — que urina por todo lado e que vai representando os demónios e a dor da separação dessa família. Enquanto isso, Eva sonha ir viver com o pai e morar num apartamento, se possível com um quarto só para ela, onde possa conservar a sua privacidade e os seus segredos da adolescência e levar consigo o gato. E a rapariga faz de tudo para consegui-lo, até consultando e enviando para o pai os anúncios classificados de alugueres de apartamentos. O pai não tem uma vida fácil, é um poeta, um espírito livre, mas ao mesmo tempo um homem ambíguo, terno mas ao mesmo atravessado por uma raiva e uma violência contida, com o qual Eva não sabe muito bem como lidar ou mesmo não saber como amar esse lado mais disfuncional do progenitor. Observando o pai e os amigos dele — sobretudo aquele amigo (José Pablo Segreda Johanning) com quem o pai partilha temporariamente morada — mas também a mãe, Eva começa a questionar-se sobre o que consiste a vida adulta, e até que ponto é sensato ou não alcançar rapidamente essa idade da maturidade.
VÊ TRAILER DE ‘TENHO SONHOS ELÉCTRICOS’
Na verdade, aquele grupo de homens e mulheres que a cercam ou circulam nas tertúlias literárias e poéticas, que se refugiam no amor pela arte e na sede de liberdade, parecem tão (ou mais) perdidos do que a jovem Eva, que todo o custo que tornar-se mulher. Porém, ‘Tenho Sonhos Eléctricos’ não pertence ao tipo de filmes de amadurecimento juvenil, onde uma menina se transforma em mulher durante umas férias de verão. Eva vai mais longe assistindo à angústia, à incapacidade e à violência do dia-a-dia, que a espera depois da adolescência. O filme aborda ainda questões de como e porque a violência se tornou linguagem, mesmo na intimidade familiar, tornando-se aliás quase uma espécie de fluxo relacional entre Eva e o pai, mas às vezes também com a mãe.
Eva fica quase paralisada com esse legado, com essa violência transmitida, quase como a herança, que a mãe recebeu inesperadamente da tal tia, que nunca conheceu. Daniela Martín Navarro é notável, colocando toda a sua energia, o seu olhar penetrante e a sua naturalidade na figura de Eva, interpretando uma protagonista teimosa e cativante. Por sua vez, Reinaldo Amien Gutiérrez encarna maravilhosamente a ambiguidade de Palomo, um pai afetuoso e ao mesmo tempo violento, perdido entre a realidade e os seus ideais e que (às vezes) é salvo pela sua arte. Valentina Maurel põe-nos também por vezes em movimento, ao percorrendo ora a pé ora de carro, a cidade-capital do país, San José, uma cidade tipicamente latino-americana raramente vista no cinema. Com ela fazemos também uma das poucas viagens cinematográficas à Costa Rica, mas muito longe de todo o seu exotismo.
JVM
Tenho Sonhos Eléctricos, em análise
Movie title: Tengo sueños electricos
Movie description: Contra os desejos de Eva, a mãe resolve reformar a casa e livrar-se do gato, que, desorientado desde o divórcio dos pais da rapariga, mija por todo o lado. Eva quer ir viver com o pai, que tão desorientado como o bichano, parece querer viver uma segunda adolescência.
Date published: 1 de May de 2023
Country: Bélgica, França, Costa Rica
Duration: 102 minutos
Director(s): Valentina Maurel
Actor(s): Daniela Marín Navarro, Reinaldo Amien, Vivian Rodríguez
Genre: Drama, 2022,
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José Vieira Mendes - 90
CONCLUSÃO:
Em ‘Tenho Sonhos Elétricos’, a costarriquenha Valentina Maurel arrisca, e vence, com uma realização que assenta num abismo vertiginoso, que desafia as convenções e qualquer ponto de vista uni-direccional. Pelo contrário oferece-nos um amplo leque de visões. Maurel constrói um filme complexo e com grandes ambições estéticas, em que cada plano parece ter sido cuidado ao milímetro e em que tudo flui com elipses precisas sem prejudicar a clareza da narrativa. ‘Tenho Sonhos Elétricos’ é um filme imenso feito no fio da navalha, que não vai deixar ninguém indiferente. Uma pequena obra-prima.
JVM
Pros
Daniela Marín Navarro em Eva com o seu olhar penetrante e a sua naturalidade e Reinaldo Amien Gutiérrez, que por sua vez, transmite perfeitamente a ambiguidade de Palomo.
Cons
O filme é de uma rara intensidade, e impõe-nos mesmo uma cuidada observação. Por isso por vezes corremos o risco de como espectadores ficarmos com a sensação de que perdemos alguma coisa importante.