"Aqui" | © No Comboio

Aqui, a Crítica | Uma carta de amor a Bruxelas do realizador Bas Devos

Depois do glorioso “Ghost Tropic”, o realizador Bas Devos regressa com “Aqui”, um conto de insónia e amor, sobre o sonho do imigrante e o espírito da cidade.

Bas Devos já assinou quatro longas-metragens, mas foi só com “Ghost Tropic” que o realizador belga começou a alcançar renome internacional. Essa fita, contudo, sofreu azares de mau timing. Com estreia mundial na Quinzena dos Realizadores de 2019, a obra só começou as estreias comerciais nos primeiros meses de 2020. Assim sendo, levou com a pandemia em cima, e até a sua carreira festivaleira saiu afetada. Diríamos que se trata de um dos grandes filmes a passar no IndieLisboa, talvez até um dos melhores trabalhos na última década de cinema, mas poucos o viram num ano em que o festival se fez na sombra do COVID-19.

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Pelo menos, programadores e cinéfilos lá se deram conta da nova voz emergente, criando antecipação pelo futuro de Devos. As expetativas foram justificadas quando, no ano passado, “Aqui” fez as honras na Berlinale e até ganhou o prémio principal da secção Encontros. Agora, graças a uma colaboração entre o IndieLisboa e a distribuidora No Comboio, o filme também chega ao público português, pronto a seduzir quem já é fã de Devos e talvez até a converter mais uns quantos ao seu cinema de solidão urbana. De facto, “Aqui” é bom ponto de partida para se começar a explorar o autor, cristalizando muitas das preocupações e ideias transversais ao seu trabalho.

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© No Combio

Notem, por exemplo, quanto “Aqui” se afigura enquanto eco de “Ghost Tropic.” As duas fitas partem de uma ideia comum, seguindo os afazeres de uma personagem a vaguear pela noite de Bruxelas. Em ambos os casos, considera-se o fado de trabalhadores imigrantes na capital belga e é através dos seus movimentos que a própria cidade acaba por ser retratada. São cartas de amor e sinfonias, são carinhos sussurrados e Humanismo cinematográfico em estado de graça. Dito isso, “Aqui” é mais ambicioso que o seu antecessor, tanto a nível narrativo quanto formal, talvez até em contexto sociopolítico.

Enquanto o filme anterior se prendia à jornada de uma só noite, “Aqui” expande-se além da alvorada. Começamos por seguir Stefan, um construtor civil da Roménia que se prepara para voltar à terra natal em quatro semanas de férias. Ou talvez fique lá mais tempo, pois há pouco que o ligue à nova nação, seu coração errante e desapegado apesar do conforto de amigos e uma irmã que partilha muita da sua situação. Na missão de esvaziar o frigorífico antes da partida, Stefan vai fazendo sopa com os ingredientes que lá encontra. Ele raramente a come, contudo, oferecendo a refeição a conhecidos com quem se vai encontrando periodicamente.


O pior são as noites, essas passagens de escuridão e silêncio, quando o corpo pede para dormir, mas a mente não obedece. No píncaro da insónia, ele vagueia sem rumo, um percurso sonambulístico pelo qual experienciamos a cidade como algo entre a materialidade quotidiana e um sonho verde. Essa cor é importante, porque o musgo é importante. Se não o é para Stefan, assim será para Shuxiu, outra imigrante perdida na selva urbana de Bruxelas. De origem chinesa, a jovem estuda os ecossistemas do musgo e ganha a vida com biscates num restaurante. Um dia, a chuva repentina faz com que se conheçam e daí floresce algo especial, belo, mas frágil.

Em certa medida, os últimos dias de Stefan na Bélgica são um espaço liminar, um limbo no qual o futuro é puro mistério e só a impermanência da situação atual é certa. Não é altura para forjar paixões, mas elas manifestam-se apesar disso. Ou, pelo menos, temos impressão que sim. Bas Devos é um realizador que constrói os filmes com a maior delicadeza, sugerindo as ligações entre figuras e espaços sem, no entanto, impingir leituras fechadas ao espetador. Ver o seu cinema é experienciar o suspiro quente que precede um beijo, essa antecipação carinhosa e doce. É efémero, uma pluma de fumo a dissipar-se numa brisa de verão. Ou talvez seja musgo.

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Afinal, a sensibilidade de Bas Devos é refletida no olhar curioso da cientista. Em pequenos pedaços do mundo natural, ela reconhece inteiras florestas. Paisagens épicas contidas num centímetro de vida. Aprender a reconhecer a beleza do musgo é o mesmo processo pelo qual o realizador nos ensina a ver os tesouros do dia-a-dia. Passamos o tempo em lugares cheios de milagres, mas raramente paramos para os apreciar, ora rasgos de beleza natural ou a maravilha contida em qualquer indivíduo. Cada um de nós é sua mesma galáxia, um enigma de infinita profundidade que merece ser visto como tal e ser amado também.

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Tudo isso Devos faz com formalismo apurado, desde a montagem até à sonoplastia. Pelo seu engenho, os ritmos de cada corte embalam o espetador e seduzem-no sob a forma de reticências. Não há pontos finais aqui, cada momento dando lugar a outro numa cadeia que se sente contínua, como se todo o filme fosse um só movimento. A fotografia descobre o paraíso na selva urbana, e a composição realça tão bem o pormenor botânica como a relação das pessoas entre si. A câmara testemunha tanta glória mundana, desde o caleidoscópio de cor quando a chuva refrata a luz até à fraternidade de trabalhadores a gozar a companhia uns dos outros. “Aqui” é sinfonia urbana de Bruxelas e é como a sopa final de Stefan. Feito com amor e um toque de melancolia, o filme será saboroso e capaz de aquecer o espírito de qualquer um disposto a provar.

Aqui, a Crítica
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Movie title: Here

Date published: 26 de April de 2024

Duration: 82 min.

Director(s): Bas Devos

Actor(s): Stefan Gota, Liyo Gong, Teodor Corban

Genre: Drama, Romance, 2023

  • Cláudio Alves - 92
92

CONCLUSÃO

“Aqui” vê o cinema de Bas Devos desenvolver-se na mesma linha estabelecida em “Ghost Tropic.” O Humanismo domina o projeto, manifestando-se em idiomas textuais e audiovisuais que tentam dar atenção aos pequenos milagres de cada dia. A comunhão de duas almas errantes aqui gera o seu próprio toque, cheiro, sabor. É musgo feito floresta e é sopa em jeito de carta de amor. Além disso, é uma apaixonada canção em honra de Bruxelas, uma dessas verdadeiras sinfonias urbanas como as que vingaram nos tempos do cinema mudo.

O MELHOR: A cena entre irmãos, quando um sono inesperado proporciona o sonho nostálgico de Stefan. Aí, o filme resvala para um paradigma onírico, descolado do quotidiano realista, mas não por isso discordante com o resto da história.

O PIOR: Nada a apontar.

CA

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