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Memória, a Crítica | Jessica Chastain e Peter Sarsgaard brilham num drama doloroso

Várias vertentes da “Memória” são exploradas no novo drama de Michel Franco, com interpretações notáveis de um elenco encabeçado por Jessica Chastain e Peter Sarsgaard.

Através da câmara de Yves Cape, Nova Iorque parece presa a uma matina perpétua. A luz é fria, mas nunca se matiza em tons de azul. Pelo contrário, é a cinza que domina, o brilho fosco da estrutura metálica, do betão armado e alcatrão velho. Sem estilizar muito a imagem, o diretor de fotografia define a metrópole como um esboço meio apagado. Talvez seja uma memória meio perdida, mal lembrada e fraturada pelo passar dos anos até que só uma sombra esfumada permanece na mente. Neste paradigma, o mínimo traço de cor quente flameja como chama ardente. Assim acontece com a cabeleira ruiva de Jessica Chastain.

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Ela é Sylvia, uma mãe solteira que trabalha na área da assistência social e passa os dias a cuidar de pessoas idosas. Logo que a vemos, é difícil afastar os olhos da sua pessoa, com o cabelo a arder na tela, exigindo a atenção do espetador. Só que, longe de definir a figura como um pico de glamour, uma qualquer beleza incandescente, a cor só acentua o cansaço patente na tez e na expressão da mulher. Basta um vislumbre e pressentimos as muitas noites passadas sem descanso, um tormento interior que assombra o dia-a-dia, uma exaustão que chega ao tutano e uma tristeza que está lá perto. Mas também há raiva expressa na sua face, no sobrolho tenso, nos olhos duros.

O contraste visual prende-nos a ela, mas é o trabalho de atriz que faz com que Sylvia se infiltre no pensamento do espetador, antes mesmo de sabermos mais sobre a sua pessoa. Pouco a pouco, lá se acumulam detalhes e o retrato da personagem se consolida. Ela é uma alcoólica com relação complicada com a família. É devota à filha, mas à mãe nem fala e zanga-se logo que a senhora é referida. Depois tem Olivia, sua irmã mais nova com quem se partilha um passado difícil. Não são precisos detalhes para sentir isso, mas a dramaturgia de “Memória” lá nos vai deixando saber a especificidade psicológica em cena.

Michel Franco explora as vicissitudes da Memória

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Tal como as cores da imagem, isso manifesta-se com a colisão e o confronto e forças distintas, quase opostas, talvez até antagonistas. Acontece numa noite, quando Olivia convence a irmã a ir à reunião com os colegas da escola secundária. Nessa festa tristonha, um homem senta-se ao lado de Sylvia, sem explicação e sem claro motivo. Ela parece reconhecê-lo, mas o estranho cumprimenta-a como alguém que nunca viu. Enervada, a alcoólica vai-se embora sem mais demora, como que em fuga da presença masculina. Só que o homem a segue pelas ruas e pelo metro, pela noite dentro até chegar a casa.

Trancando-se com medo, Sylvia observa-o pela janela, mas o sujeito nada faz. Fica simplesmente à espera, à chuva. Será ele Saul, interpretado por Peter Sarsgaard num trabalho que lhe valeu a Taça Volpi para Melhor Ator no Festival de Veneza. Sofrendo de demência prematura, o homem facilmente fica desorientado, incapaz de reconhecer a gente em redor ou o espaço em que se encontra. Isso explicará o seu comportamento estranho, mas não serve para justificar o ódio que começa a surgir no modo como Sylvia o observa. Numa revelação dolorosa, ela acusa-o de ter participado em abusos sexuais sofridos na adolescência, e quase o deixa sozinho no parque em jeito de vingança.


Outros cineastas ficariam por aí, contrastando a dor de quem não se consegue esquecer com o desamparo de quem não se consegue lembrar, unidos por um crime perdido no passado partilhado. Só que Michel Franco aprofunda a questão ao revelar o engano de Sylvia – afinal Saul não estava presente quando as violações ocorreram. Fazem-se pedidos de desculpa e flagelação social, mas também se fazem ofertas de trabalho, acabando com a mulher traumatizada em cuidados contínuos do homem cuja mente o está sempre a trair. Pouco a pouco, forma-se uma relação de amizade e talvez algo mais. Pouco a pouco, vive-se além da memória sem, contudo, a transcender.

A labareda ruiva junta-se a faces rosadas, olhos avermelhados pela lágrima e um afeto que quase aquece a imagem fria de “Memória.” Dito isso, nada é tão simples como o desabrochar da cumplicidade e da paixão. Os traumas de Sylvia continuam à flor da pele e a doença de Saul proporciona um inevitável desequilíbrio na dinâmica do casal. Os dois protagonistas vivem numa relativa negação, contrariando as expetativas e temores de todos aqueles que os mais amam e orbitam em torno da sua união. As duas famílias tornam-se uma fonte de drama por si só, uma personificação de cinismo e dúvida, um veículo para o aprofundamento deste retrato duplo.

O elenco secundário é tão fantástico quanto Sarsgaard e Chastain

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O que mais surpreende nesta situação será mesmo quanto essas personagens secundárias se impõem à relação central de “Memória,” rompendo com o oásis que Chastain e Sarsgaard estabelece no âmago do filme. Entenda-se que os dois atores principais são fantásticos, especialmente o intérprete premiado em Veneza, cuja prestação se preocupa sempre mais com a interioridade emotiva de Saul que com a sua patologia. Dito isso, o elenco secundário é ainda melhor, ao ponto que o espetador começa a questionar as prioridades narrativas de Franco e companhia. Quiçá “Memória” fosse melhor se privilegiasse uma dessas perspetivas periféricas.

 Como Olivia, Merritt Wever é a arma secreta do filme, materializando uma relação contraditória com a memória no modo como as irmãs confrontam os horrores da sua infância. Jessica Harper é igualmente impressionante como a mãe monstruosa de Sylvia, um sorriso forçado sempre pronto a negar a dor da filha para manter a paz. Josh Charles é o irmão de Saul, outra figura cujo antagonismo podia ser simples, mas que emerge como um poço de compromissos e concessões, de devoção fraternal e irritação crescente. Através deles, Michel Franco expande o quadro psicológico de “Memória” sem perder a centralidade de Saul e Sylvia.

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Infelizmente, toda esta ênfase no trabalho de ator acaba por prejudicar a eficácia do filme enquanto objeto cinematográfico. É triste porque, noutras ocasiões, Michel Franco demonstrou virtuosismo formal. Enfim, o filme é um brilhante exercício para o elenco, mas é também monótono nos tons e preso a uma miséria sem estribeiras que quase parece sufocar o espetador. Em certa medida, essa faceta demonstra o poder da fita, sua capacidade para atormentar quem a vê e suscitar um desconforto visceral. Por outro lado, queremos mais, ora na dramaturgia ou na conceção audiovisual da tormenta. Mesmo assim, no meio de toda a sua crueldade intolerável, “Memória” merece aplausos. Ou, pelo menos, os atores justificam uma ovação de pé.

Memória, a Crítica
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Movie title: Memory

Date published: 8 de August de 2024

Duration: 103 min.

Director(s): Michel Franco

Actor(s): Jessica Chastain, Peter Sarsgaard, Merritt Wever, James Charles, Jessica Harper, Jackson Dorfman, Elsie Fisher, Tom Hammond

Genre: Drama, 2023

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

O realizador mexicano Michel Franco tende a amar tragédia, criando filmes onde a sofrimento é a principal experiência humana. Mesmo nesse contexto, “Memória” é um conto de invulgar dor, trespassando traumas e patologias, o horror do passado e a fragilidade do presente. Os atores são quem mais beneficia destas estratégias cinematográficas, dando tudo o que têm a um projeto que cairia por terra sem a sua contribuição.

O MELHOR: Wever, Harper, Charles, Sarsgaard e Chastain – uau, que elenco!

O PIOR: A natureza monótona da fita, sua fome por miséria humana sem pouco oferecer como contraponto. Em certa medida, o argumento parece motivada pelo que os atores conseguem fazer ao invés que pelo que o filme necessita enquanto texto dramático.

CA

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