"Fogo do Vento" | © Clarão Companhia

Fogo do Vento, a Crítica | Marta Mateus traz um poema alentejano ao Doclisboa

“Fogo do Vento” de Marta Mateus aparece-nos na competição do Doclisboa como um manifesto comunista cruzado com um poema alentejano.

Algures no Alentejo, uma vinha toma posse da paisagem e estende-se até onde a vista alcança. Todo o detalhe, até o mais ínfimo pormenor de textura, as folhas carnudas e a erva seca onde a raiz se enterra no solo – tudo isso é capturado por uma câmara voraz. É um olhar esfomeado por informação visual, usando as possibilidades máximas do meio digital para concretizar a materialidade da vinha no grande ecrã. As cores são fortes, mais reais que a realidade, e a qualidade tátil da imagem não dá para exagerar. Em situação extremada, certos planos parecem usar profundidade focal para espalmar a tridimensionalidade da obra e renegar a perspetiva classista.

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Tudo isto serve para dizer que o “Fogo do Vento” de Marta Mateus possui um estilo único, um sobressalto estético que explora as vicissitudes do cinema digital em jeito semelhante ao dos filmes de Pedro Costa. Aliás, esse outro cineasta português é aqui produtor, acentuando as conetividades entre o trabalho de cada autor. Dito isso, não devemos exagerar as parecenças. Em abordagem textual e tonal, até no propósito dramatúrgico da imagem, Mateus está a explorar algo só seu. “Fogo do Vento” existe numa continuidade, mas não é um pesadelo derivativo. Pelo contrário, trata-se de um sonho cinematográfico que tanto imerge como distancia.

Faz-se libação de sangue e o touro enlouquece.

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© Clarão Companhia

Pensemos naqueles primeiros momentos em hora da vindima, quando a fotografia de Mateus e Vitor Carvalho atinge o seu apogeu solarengo e faz do ecrã uma espécie de pintura realista sobre motivos rurais. O vento faz as folhas dançar e a vegetação canta um sussurro. Está-se no precipício de algo primordial e basta um sacrifício de sangue para despertar a magia contida neste “Fogo do Vento.” Acontece quando uma jovem se corta e as gotas se misturam com o vinho, invocando a figura do touro enraivecido à caça dos apanhadores da uva. Não há nada a fazer senão fugir e, num abrir e fechar de olhos, a fita torna-se numa versão bovina do “Cujo” de Stephen King.

Só que não é uma família fechada num carro enquanto um cão os aterroriza. Ao invés disso, Mateus considera uma coletividade enquanto protagonista, nunca individualizando muito as suas personagens além do trabalho que as consigna à vinha e a sua ligação ancestral com a terra, sua história e memórias. Também não há carro em que caiba esta gente toda. No entanto, há árvores, trepadas pelos apanhadores aterrorizados na fuga do boi. Ele lá em baixo fica a meter medo à gente, proporcionando uma série de imagens fantásticas onde o registo visual do filme volta a vingar. Mateus não parece interessada em cinema de género, mas algumas das suas composições são dignas do terror no seu melhor.


Mas mais do que imagética assombrosa, o touro proporciona uma rutura na realidade da fita que só se vai intensificando à medida que o sol faz o seu percurso e o dia se torna noite. Com a lua no céu, os fantasmas emergem das sombras e o tempo inverte o seu sentido, ressuscitando as histórias de um Portugal passado, guerras perdidas e vencidas, uma ditadura caída, um idílio ilusório e meio esquecido. Desde as copas feitas esconderijo, o filme faz impossibilidades tornarem-se realidade, suscitando uma alucinação lusitana sobre temas pró-proletariado e anti bélicos. Raramente foi o Alentejo assim retratado em cinema.

Há simbolismo forte na mise-en-scène e no texto também. Em certa medida, Mateus transcende a veia documental para chegar a algo mais próximo da tradição do teatro Simbolista que nasceu da influência francesa. Considerem-se as heranças de dramaturgos e poetas como Eugénio de Castro e António Nobre. Mas também intensifica a qualidade histórica da peça ao centrar a figura de Maria Catarina Sapata e suas lembranças reais, fotografias de família postas em frente à câmara para invocar fantasmas noutros termos. O mesmo se pode dizer da própria realizadora cujos ancestrais se fazem passar pela tela nesta sessão espírita em forma de filme.

“Fogo de Deus” é uma história de fantasmas muito inortodoxa.

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© Clarão Companhia

O mais surpreendente de tudo serão as emoções que o “Fogo do Vento” consegue englobar no seu jogo sem quebrar o feitiço de slow cinema e intelectualismos sublimados. Traços de humor são estranhíssimos e tendem a manifestar jogos mórbidos. Vejam-se os fantasmas a roubar cigarros aos recentemente defuntos, ou a própria interpretação de não atores cujo trabalho tanto recorda a piada seca como a fábula à la Pasolini. Quando o absurdismo é tratado com a seriedade de uma procissão solene, há sempre aquele rasgar do sorriso a caminho da gargalhada. Dito isso, a lágrima segue ao júbilo, com noções de perda colossal a reverberar do ecrã até fazer mexer o coração do espetador.

Essas maravilhas permitem que a fita se mantenha numa dimensão de sinceridade capaz de sustentar a colagem de citações e signos inescrutáveis que Mateus compõe noutras áreas do filme. Para uma primeira obra, “Fogo do Vento” é extraordinário na sua ambição, tanto no que se refere aos conceitos tratados como a ideia fluida que tem do tempo e o formalismo rigoroso que se faz sentir em todo o segundo destes 72 minutos bem densos. Estreado em competição em Locarno e depois passado no NYFF e agora no DocLisboa, trata-se de um dos grandes feitos do cinema português em 2024. Mal podemos esperar para testemunhar o que Marta Mateus tem preparado para nós em anos vindouros.

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O Doclisboa decorre de 17 a 27 de outubro. Não percas a nossa cobertura, que se estende além das datas do festival.

Doclisboa '24 | Fogo do Vento, a Crítica

Movie title: Fogo do Vento

Date published: 26 de October de 2024

Country: Portugal

Duration: 72 min.

Director(s): Marta Mateus

Actor(s): Maria Catarina Sapata, Safir Eizner, Maria Clara Madeira, José Moura, Soraia Prudêncio

Genre: Drama, Documentário, 2024

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Um poema e um manifesto, “Fogo do Vento” representa um curioso exemplo de cinema político que arrisca a estetização em demérito das suas ideias. Contudo, o formalismo puro e duro da obra eleva-a a cima de trabalhos mais panfletários, sem, no entanto, invalidar as componentes mais emocionais em cena. O uso de histórias familiares em comunhão com História nacional é um toque de génio. Diríamos o mesmo da flexibilidade de tom, o modo como Mateus não teme um toque de comédia aqui e ali, graças que imbuem a sua primeira longa-metragem com invulgar graciosidade.

O MELHOR: A fotografia, desde os prelúdios vindimais até ao devaneio de uma noite feita em dia tingido de azul. A alvorada é, talvez, o píncaro desse registo, fazendo culminar todas as qualidades que aproximam o filme da pintura viva sem, no entanto, tornarem “Fogo do Vento” num exercício nostálgico.

O PIOR: A necessidade da citação direta e uma anonimização do trabalhador através do retrato coletivo. Esse último ponto não saltaria tanto à vista não fosse o relevo dado à figura de Maria Catarina Sapata que já havia aparecido nas curtas de Marta Mateus.

CA

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