A Paixão Segundo G.H., a Crítica | Uma extraordinária viagem cinematográfica ao universo de Clarisse Lispector
“A Paixão Segundo G.H.”, estreou timidamente nas salas pelas mãos da Nitrato Filmes, mas não podem perdê-lo pois é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, que conjuga o cinema, em particular de Luiz Fernando Carvalho, com um dos maiores nomes da literatura brasileira do século XX: Clarisse Lispector.
“A paixão segundo G.H.”, de Luiz Fernando Carvalho é um filme baseado no livro homónimo de Clarice Lispector, que já de si é uma obra bastante complexa e que tem sido pouco considerada para fazer uma possível adaptação ao cinema. De facto, Luiz Fernando Carvalho — seguindo de certo modo os preceitos e lirismo do seu filme anterior “Lavoura Arcaica” (2001), baseado na obra de Raduan Nassar —, realiza uma missão quase impossível, proporcionando-nos com um impecável virtuosismo técnico e uma sensação quase visceral, uma alucinante viagem pela imagem, pelo som e sobretudo pelas poderosas palavras de Clarice Lispector.
No prefácio de “A paixão segundo G.H.”, publicado 60 anos atrás, Clarice Lispector dizia que ficaria muito contente se o seu livro fosse lido “apenas por pessoas de alma já formada”. De facto é preciso estar muito bem formado ou melhor preparado, também como espectador para assistir a pouco mais de 2 horas deste filme deslumbrante, bastante experimental é verdade, que pode criar reações antagónicas e até saídas da sala. Mas quem fica até ao fim sairá certamente sensibilizado e com a alma cheia!
AS MULHERES DE LISPECTOR
O filme é minuciosamente escrito por Melina Dalboni sobre as palavras de Lispector; mas melhor ainda mesmo é deixar-nos enfeitiçar pela beleza, magnetismo, entrega e interpretação do texto, quase a solo da multifacetada Maria Fernanda Cândido. Ela é uma das maiores e mais internacionais atrizes brasileiras da atualidade, vimo-la por exemplo como mulher de Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino), em “O Traidor”, (2019), de Marco Bellocchio.
VÊ TRAILER DE “A PAIXÃO SEGUNDO G. H.”
Como quase todas as personagens femininas de Clarice, também esta misteriosa G.H. é uma figura com uma grande densidade psicológica e complexidade: uma bela e rica escultora (Maria Fernanda Cândido), que faz parte da elite carioca e, após o fim de uma paixão, decide arrumar e limpar o seu apartamento,— para talvez deixá-lo, por más memórias — começando pelo quarto da empregada negra Janair (a guineense Samira Nancassa), que também repentinamente, pediu demissão no dia anterior e partiu. Ao entrar no quartinho da empregada, já afinal arrumado, G.H. depara-se com uma enorme barata e esmaga-a.
MATAR BARATAS NO QUARTO
Este inesperado encontro, com o repugnante inseto rastejante, veja-se é o ponto de partida para G.H. questionar-se sobre a sua própria condição humana e de mulher, ao mesmo tempo que vai narrando o seu processo de perda de identidade e a sua essência, causadas pelo fim abrupto dessa história de amor e paixão arrasadora. A proposta do filme é efetivamente esse processo de despersonalização de G.H, — que funciona obviamente, como um prolongamento de Lispector, que viveu também num apartamento próximo do Leme em Copacabana e viveu um amor e casamento infeliz com o marido diplomata — através de uma dolorosa caminhada, feita praticamente entre as divisões do seu belo apartamento virado para uma das mais irónicas praias do Rio de Janeiro; ao mesmo tempo que essa bela e esguia figura de mulher, se vai libertando de todas as máscaras que representam o sistema em que vive, os seus códigos sociais, morais e religiosos.
A sua incessante e profunda narração vai sendo acompanhada por um visual deslumbrante, enquadramentos perfeitos, espelhos e reflexões, além de um incrível desenho de produção, ao nível do cenário, guarda-roupa, cabelos e maquilhagem, tudo igualmente embalado por uma poderosa banda sonora.
A BELEZA DE CÂNDIDO
De facto, a figura e a interpretação de Maria Fernanda Cândido são sem dúvida, os focos desta etérea odisseia literária-cinematográfica no feminino e a imagem que nos fica para além das palavras por vezes abstratas e existencialistas da escritora. Para além da enorme beleza de “A paixão segundo G.H.”, este filme é sem dúvida também, uma excelente oportunidade para mergulharmos no misterioso universo de Clarisse Lispector e conhecer um dos livros mais fascinantes da literatura brasileira do século XX. O filme ainda está nas salas, pelo menos no Cinema Trindade no Porto, está a circular pelo país por várias salas de cinema e cineclubes. Notável!
A paixão segundo G.H., a crítica | Uma viagem aos sonhos e pesadelos de Clarisse Lispector
Movie title: A paixão segundo G. H.
Movie description: “G.H. vivia no último andar de uma superestrutura, e, mesmo construído no ar, era um edifício sólido. E isto havia séculos vinha acontecendo. E dava certo. Ninguém disse que não; era certo.”
Date published: 30 de April de 2024
Country: Brasil
Duration: 124 min
Director(s): Luiz Fernando Carvalho
Actor(s): Maria Fernanda Candido, Samira Nancassa
Genre: Drama, 2023,
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José Vieira Mendes - 90
CONCLUSÃO:
Baseado no romance homónimo de Clarice Lispector, “A paixão segundo G.H”. passa-se no Rio de Janeiro, em 1964. Após o fim de uma paixão, G.H. (Maria Fernanda Cândido), uma escultora da elite carioca, decide arrumar o seu apartamento em Copacabana, começando pelo quarto de serviço da empregada. No dia anterior, a empregada repentinamente pediu demissão. No quarto, G.H. depara-se com uma enorme barata que revela o seu próprio horror diante do mundo, reflexo de uma sociedade repleta de preconceitos contra os seres que elege como subalternos. Diante do inseto, G.H. vive uma espécie de via sacra existencial. A extraordinária experiência cinematográfica do filme de Luiz Fernando Carvalho carregada de virtuosismo técnico e estético narra precisamente a perda de identidade da bela G.H. incrivelmente interpretada por Maria Fernanda Cândido, ao mesmo tempo que nas suas poderosas palavras, questiona todas as convenções sociais que aprisionam as mulheres infelizmente até os dias de hoje.
JVM
Pros
A incrível interpretação, entrega, beleza e elegância de Maria Fernanda Cândido a nova musa do cinema brasileiro (e internacional) da actualidade. Além do virtuosismo técnico e estético de toda a equipa do filme da realização ao design de produção.
Cons
A dificuldade talvez para alguns espectadores em deixarem-se surpreender e envolver de uma forma quase visceral nas poderosas palavras e no existencialismo literário de Clarice Lispector, que apesar de tudo o realizador consegue transpor em belas imagens.