Antevisão | ‘Marinheiro das Montanhas’, as raizes de um cineasta
O documentário ‘Marinheiro das Montanhas’ do realizador brasileiro Karim Aïnouz é um lindíssimo ensaio autobiográfico em forma de ‘road movie’, em que ele busca de suas raízes argelinas, mas também procura o legado da luta pela independência, contra o domínio colonial francês. Nas salas de cinema a 18 de maio. A não perder!
O realizador brasileiro Karim Aïnouz [A Vida Invisível (de Eurídice Gusmão] — vai estrear-se com ‘Firebrand’, protagonizado por Jude Law e Alicia Vikander, um filme de produção internacional, na Competição do Festival de Cannes 2023, daqui a dias — regressou à Argélia de parte das suas origens, para filmar ‘Marinheiro das Montanhas’, de uma forma muito simples e intuitiva. Mas para explicá-lo, torna-se necessário fornecer alguns dos aspectos biográficos de Karim Aïnouz, que começou a ser reconhecido internacionalmente pelo seu filme ‘Madame Satã’ (2002) e recentemente pelo sucesso (sempre relativo para filmes independentes) de ‘A Vida Invísivel’, aliás uma obra com fortes ligações a Portugal. Cineasta e artista visual brasileiro, nascido em 1966 em Fortaleza, Karim Aïnouz é filho de mãe brasileira e de um pai argelino, nascido numa pequena aldeia perto da cidade de Cabília (na região montanhosa no norte da Argélia). Com formação em arquitetura e fotografia, Karim Aïnouz cresceu no Brasil, morou três anos em França, depois em Nova Iorque, antes de se estabelecer nos últimos anos, em Berlim. Aos 55 anos, Karim Aïnouz fez esta um longa-metragem documental, intitulada ‘Marinheiro das Montanhas’, como um dever de memória, no qual faz uma espécie de inventário emocional sobre a sua própria vida, destino e origens.
VÊ TRAILER DE ‘MARINHEIRO DAS MONTANHAS’
O ‘Marinheiro das Montanhas’, segue os passos dos seus pais, documentando a história de amor e a separação da brasileira Iracema e do argelino Madjid, em 1965; desde o seu caso de amor que começou nos EUA, onde estavam ambos como bolseiros universitários e chegaram mesmo a casar-se; e depois sobre os dias felizes de que ainda restavam imagens, numa caixa de slides, até à única viagem de regresso de Madjid à Argélia, para não mais se voltarem a ver. Iracema voltou para Fortaleza sozinha e grávida. Karim Aïnouz cresceu sem o pai, até aos 18 anos quando foi encontrá-lo em Paris, na esplanada de um café, sem terem nada para dizer um ao outro. O pai, engenheiro de profissão, tem agora com 80 anos vive em Paris, casou-se com uma argelina e tem uma filha: curiosamente a irmã de Karim, é a cineasta Kamir Aïnouz, realizadora de ‘Cigare au miel’ (2020). A mãe de Karim, bióloga, não voltou a casar e faleceu há cinco anos. O filme também evoca a guerra de independência argelina, as lembranças da infância e os contrastes entre as cidades: argelina Cabília e Fortaleza, no nordeste brasileiro.
Em maio passado o cineasta confidenciava em entrevista a um media da especialidade: Peguei um barco em Marselha e me vi na Argélia, na aldeia de onde vem meu pai, que é uma região montanhosa, onde neva. Minha mãe faleceu em 2015, mas ela me acompanha nessa jornada como uma espécie de companheira imaginária. Filmei toda a viagem, construindo um filme (…) tão íntimo e pessoal (…). O filme é narrado pelo próprio Karim, que lê como que fosse uma carta escrita à sua mãe, já falecida, transformando-a assim na sua companheira imaginária dessa viagem, primeiro vagueando pelas ruas de Argel, a capital e depois por Cabília, ao encontro de pessoas desconhecidas e lugares comuns. Ao mesmo tempo, o cineasta vai relatando e comentando episódios essa jornada, (que aparentemente fez sozinho), reactivando as suas memórias pessoais e familiares, revelando os muitos sentimentos contraditórios, que marcam o seu percurso e da sua família; e também à procura as suas raízes, no contacto com as pessoas e com vontade de manter presentes essas tradições, como é o caso da belíssima lenda (e das imagens que a ilustram) da criação da aldeia natal do pai, contada pela Inês, a sua jovem parente. Assim entre registos da viagem, filmagens caseiras, fotografias de família e actuais, arquivos históricos e excertos de filme em Super-8, o ‘Marinheiro das Montanhas’ faz um fina narrativa, (a montagem é extraordinária) entre a história de amor dos pais, a Guerra de Independência Argelina, as memórias de infância e os mais variados contrastes entre as cidades de Cabília (Argélia) e Fortaleza, cidade natal de Karim e da sua mãe, Iracema. O cineasta trata-a quase como ‘Iracema’, a figura da lenda do Ceará, que inspirou o romance como o mesmo nome de José de Alencar, e que uma vez quando era pequeno a mãe lhe narrou, em vez de contar antes a verdade sobre seu o pai ausente. Atenção também à notável e cuidada banda-sonora, que acompanha a sucessiva e por vezes inesperada sucessão de imagens de cores fortes e também para as interessantes e suaves conversas entre pessoas de culturas muito diferentes, mas onde habitam muita generosidade e comunhão.
JVM