Cemitério do Esplendor, em análise
Em Cemitério do Esplendor, Apichatpong Weerasethakul concebe uma hipnótica obra sobre a ténue membrana que separa o passado do presente, os crimes esquecidos do quotidiano pacífico, e a banalidade do dia-a-dia com a magia do mundo espiritual.
Para além de ser possessor de um nome que poucos cinéfilos ocidentais têm esperança de algum dia saber pronunciar, Apichatpong Weerasethakul tem a honra de ser uma das mais inigualáveis vozes no cinema contemporâneo. Os seus filmes são completamente inconfundíveis com os de quaisquer outros autores, sendo portadores de monumental densidade metafórica e histórica escondida por entre um peculiar vagar rítmico e temático, onde o sobrenatural, o espiritual e o passado se manifestam constantemente no presente terreno com uma casualidade imensamente desconcertante. Usualmente, também podemos verificar idiossincráticos jogos estruturais nas suas obras, assim como um completo abandono de quaisquer normas de eficiência dramática em prol de uma observação lenta e sonolenta que mais espetadores enfurece que aqueles que hipnotiza no seu peculiar feitiço cinematográfico.
Tais características resultam numa incomensurável exclusividade em termos de público. Ou se está aberto às experiências difíceis e superficialmente entediantes de Weerasethakul ou não se está, e os seus filmes são pouco mais que um instrumento de lenta e maliciosa tortura fílmica. Como consequência, este é um autor que tem alguns fãs em fogoso amor pelo seu trabalho mas que também tem muitas respeitadas vozes críticas que simplesmente desprezam o seu estilo. Mesmo para os seus fãs, poder-se-á afirmar, Cemitério do Esplendor, o seu mais recente trabalho, vai-se revelar como uma nova experiência, pois esta é a obra mais declarativamente política do autor tailandês, sendo também um dos seus filmes em que mais se consegue percecionar uma linear estrutura narrativa.
Essa estrutura desenvolve-se em volta de um estranhíssimo hospital improvisado numa pequena escola, onde vários soldados comatosos convalescem. Para o seu sono profundo, não parecem haver explicações e, quando algum deles desperta por tempo limitado, sabemos que sonham constantemente com guerras do passado, apesar dos dispositivos luminosos que lhes rodeiam as camas e que, supostamente, serviriam para induzir sonhos calmantes e positivos aos pacientes. Para além desses aparelhos pouco existe de cuidados médicos para estes guerreiros caídos em dormência interminável, a não ser o auxílio de algumas enfermeiras como Jen, a protagonista de Cemitério do Esplendor.
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Ao longo da narrativa, ela vai-se apegando gradualmente a um dos seus pacientes inconscientes, um atraente soldado chamado Itt, sendo que, sem razão aparente, um dia ele desperta quando ela espalhava creme hidratante pelo seu corpo inerte. A partir desse despertar, eles começam a estabelecer uma peculiar cumplicidade, se bem que Itt é constantemente vitimizado pelo seu sono sobrenatural, adormecendo muitas vezes a meio de uma frase e nos mais impróprios lugares. Numa sequência de enorme importância simbólica, por exemplo, ele adormece durante uma ida ao cinema e tem que ser carregado até ao hospital.
Nessa sequência Weerasethakul demonstra uma considerável ousadia política e crítica ao mesmo tempo que quase perfeitamente sintetiza o seu estilo pessoal. Para começar, depois de uma série de trailers lúridos de ridículas obras de cinema comercial tailandês cheios de melodrama e violência, as audiências levantam-se para ouvir o hino nacional, tal como é obrigatório em qualquer ida ao cinema nessa nação. No entanto, o som não se manifesta e ficam todos em pose de respeito para com a escuridão vazia e o completo silêncio. Daí, cortamos para sem-abrigos nas ruas da localidade, alguns deles a dormir junto a um mural quase religioso de Sarit Thanarat, uma importante figura na história tailandesa e um dos seus mais opressivos ditadores. Finalmente regressamos a Jen e Itt, com este a ser levado para fora do centro comercial onde estava o cinema, num plano que reúne várias escadas rolantes em direções díspares e em regular movimento, à medida que a imagem se desvanece e mostra a noite no hospital, com os soldados a dormir sob a alçada das luzes de néon que vão sonhadoramente mudando de cor. Uma feroz, mas delicada e subtil crítica politica, um passado em constante comunhão com o presente, uma completa passividade comunal e um limbo constante entre o real e o irreal, tudo capturado com uma imperiosa mestria formal que prima pela sua paciente observação que é tão vagarosa e casual que consegue do quotidiano retirar uma desconcertante inumanidade e misticismo.
Este tipo de relação de imagens não é raro neste filme ou na filmografia do autor, sendo que se poderia mesmo dizer que essa é a sua mais clamorosa marca estilística. Isso ainda se acentua mais neste filme, devido ao percetível conforto e domínio de Weerasethakul sob a localização da sua narrativa, pois todo o Cemitério do Esplendor foi filmado na sua terra natal de Khon Kaen. Dessas imagens que lhe são intrinsecamente familiares, este autor desenterra uma miríade de realidades passadas e espirituais, chegando mesmo a invocar a presença de princesas divinas que caminham entre os mortais e de uma médium que consegue transmitir as palavras de Itt para descrever as várias realidades e existências que já se abateram sobre os lugares que a sua câmara calmamente filma. Debaixo do chão do hospital, por exemplo, cadáveres enchem a terra, como fantasmas de guerras passadas e ainda lutadas nos sonhos dos soldados. Guerreiros cuja mente foi sequestrada pelos espíritos dos reis já há muito falecidos mas que ainda detêm poder opressivo sobre a população tailandesa. A verdadeira intenção deste autor que tem visto as suas obras serem alvo de censura na Tailândia e que teme pela sua segurança face ao poder do atual regime não é particularmente difícil de perceber, mas não deixa de ser impactante na sua execução.
No final, o mundo retratado por Weerasethakul é um de zombies que vivem placidamente em doentio conformismo para com forças humanas e sobrenaturais que os condicionam a eterna subserviência. Mesmo os que se encontram acordados veem as suas vidas em constante domínio autoritário e seguem as instruções cegamente como sonâmbulos hipnotizados. Ao longo do filme várias vezes ouvimos personagens discutir as propriedades de cremes hidratantes e outros produtos para a pele, e a sua serena paz é como esses remédios, apenas uma confortável e pouco eficaz calma que é aplicada à superfície mas que não consegue proteger as pessoas dos horrores que realmente os corroem. Mesmo em imagens como uma aula de aeróbica ao ar livre, o movimento sincronizado dos participantes ganha dimensões metafóricas de desconfortável seriedade.
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Apesar de toda esta densidade formal e política, sem sequer se mencionar as questões de espiritualidade budista que são uma constante na filmografia deste autor, Cemitério do Esplendor é uma experiência de grande paz e deleite, como uma sessão de meditação pontuada por casuais alucinações. Aliás, todo o filme, e talvez toda a obra de Apichatpong Weerasethakul, é como um sonho acordado que podemos experienciar se estivermos dispostos a nos deixar guiar pelos seus códigos característicos e nebulosa opacidade.
O MELHOR: Os ritmos meio sonâmbulos de toda a experiência, cuja montagem parece seguir o movimento idiossincrático de Jen com as suas pernas de comprimentos diferentes, e as imagens simultaneamente sonhadoras e fortemente naturalistas, cortesia da fotografia de Diego Garcia, que complementam tais jogos rítmicos.
O PIOR: A falta de experimentação estrutural que é bastante surpreendente sendo esta uma obra de Apichatpong Weerasethakul.
Título Original: Rak ti Khon Kaen
Realizador: Apichatpong Weerasethakul
Elenco: Jenjira Pongpas, Banlop Lomnoi, Jarinpattra Rueangram
Midas Filmes | Drama | 2015 | 122 min
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