Cenas de Família, em análise
Cenas de Família é mais uma comédia sobre uma família disfuncional, onde questões sobre a natureza da arte são uma parte intrínseca da história e suas complicadas personagens.
Uma sumária passagem por qualquer sinopse de Cenas de Família irá revelar a que subgénero este filme pertence: a comédia dramática independente sobre uma família disfuncional. E, para muitos, isso será razão suficiente para ignorar aquela que é a segunda obra de Jason Bateman como realizador. Afinal, já há bastantes filmes assim no panorama do cinema independente americano e não será Bateman quem lhes irá trazer alguma nova vida ou inovação. Certo?
Sim e não se formos generosos e claros. Cenas de Família é certamente um filme que passa maior parte da sua duração a examinar e tentar grosseiramente dissecar a dinâmica de uma família disfuncional, mas é também um filme com muito mais ideias que a habitual proposta sobre disfunção familiar. Especificamente, este é um filme que aborda o tema da família e do trauma de infância na mesma medida em que aborda questões sobre a natureza e legitimidade da performance enquanto arte, e, poderíamos dizer, do modo como a arte intersecta a vida e sua dimensão ética. Mesmo que os resultados finais tendam a sugerir uma certa falta de originalidade e uma abjeta ausência de criatividade formal, Bateman não poderá ser acusado de falta de ambição.
Em Cenas de Família, começamos por encontrar os nosso dois protagonistas, Baxter e Annie Fang, durante um período negro das suas vidas adultas. Ela é um atriz de Hollywood que está a chegar a um impasse na sua carreira e ele é um escritor que, após um primeiro romance aclamado e um segundo livro desapontante, está a tentar escrever uma nova obra e encontra-se a sofrer de um caso sério de bloqueio criativo. Um acidente no trabalho de Baxter resulta nos dois irmãos passarem alguns dias na companhia dos seus pais, posicionando todas as peças na mesa de xadrez do filme, antes de um misterioso desaparecimento instalar o caos e a incerteza.
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Um importante detalhe a apontar é que Caleb e Camille, os pais dos irmãos, são artistas de performance que, ao longo da sua vida, têm vindo a ganhar renome pelas suas intervenções encenadas no meio de grupos de pessoas insuspeitas. Performances que, depois do nascimento dos seus filhos, passaram a incluir as crianças também, a quem os pais desumanamente começaram a tratar como Criança A e B. Em suma, da sua vida familiar, eles tiraram ferramentas para a sua “arte”, acabando por traumatizar os seus filhos que, já adultos, ainda sentem as cicatrizes emocionais das atitudes parentais e artísticas dos Fang mais velhos. Também não ajuda que Caleb trate os interesses e o trabalho dos seus filhos como algo, no mínimo, sem interesse ou mérito e, no máximo, como algo desprezável e estúpido.
O filme é baseado num romance best-seller de Kevin Wilson e as marcas do seu trabalho estão fortemente presentes na versão cinematográfica, mesmo os seus elementos mais infelizes. Nomeadamente, a sua utilização muito pouco subtil dos traumas dos Fang como uma metáfora para o modo como todas as crianças são, de certo modo, influenciadas e magoadas pelas suas figuras parentais e como isso se vai ramificando e manifestando na sua vida adulta. Nesse sentido, Cenas de Família é tristemente didático e sem grande interesse, mas há também a já mencionada dimensão artística ao texto. É essa parte sobre o mundo da arte contemporânea que torna o filme em algo especial e é nos momentos mais focados nesse tema, como uma série de entrevistas de um falso documentário, que Bateman deixa que os tons cómicos do livro original venham ao de cima.
Tonalidades essas que raramente são bem moduladas pelo realizador/ator. Na verdade, Bateman é claramente incapaz de atingir essas subtis modulações tonais, optando por uma atmosfera de soturna melancolia generalizada, onde os únicos rasgos de humor parecem acidentes ou têm a sua origem nas partes de documentário que são uma quebra óbvia com a realidade do filme e sua estética. Basta olharmos para a casa dos patriarcas Fang para vermos essa incapacidade, sendo que, desde o primeiro momento em que nela entramos, a habitação parece ser um mausoléu de sombras, onde qualquer raio de alegria é rapidamente consumido pela escuridão que tudo engole.
É certo que este é um filme sobre pessoas cruéis e desagradáveis, mas filmá-lo como uma tragédia é ignorar os seus aspetos mais absurdos. O contraste entre o humor e a tóxica história familiar é perdida no filme, sendo que apenas os atores, com exceção de Bateman, parecem querer brincar com as possibilidades tonais da história dos Fang. Nicole Kidman é impressionante como Annie, especialmente em cenas onde a câmara de Bateman se fixa na sua expressão facial enquanto ela silenciosamente observa os seus familiares a pontificarem sobre arte ou suas mágoas pessoais. No entanto, seria uma terrível mentira, apontar outro nome que não de Christopher Walken como a grande joia do filme. No texto do filme, Caleb é o inquestionável antagonista que vê a sua arte como um modo de auto-validação e olha seus filhos como meros instrumentos a serem explorados segundo o seu ego dita. Mas, apesar disso, o ator Oscarizado consegue dele extrair sombras de cruel humanidade e rasgos de indiferença parental que conseguem ser mais cortantes que qualquer um dos seus mais venenosos diálogos.
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O momento chave de Cenas de Família ocorre numa confrontação entre os irmãos e seus pais. Caleb tenta defender o que fez aos filhos e fala de como lhes abriu os horizontes. Tal como ele fez às pessoas que experienciaram as suas performances, concedeu a Annie e Baxter uma visão alternativa do mundo, do mundano e do espetacular. Mas Annie rapidamente rebenta com o balão da sua falaciosa justificação. As pessoas que viam as suas performances podiam ser acordadas e confrontadas com algo fora do vulgar, mas para os irmãos, não havia alternativa, não havia nenhum acordar e nenhum contraste. Afinal, eles estavam sempre encurralados naquele mundo de falsidade e espetáculo imposto à força pelos pais. Ao contrário das audiências, eles nunca podiam voltar às suas vidas, nunca se poderiam afastar e nunca viveram nenhuma dessa normalidade que Caleb odeia. Isto não é particularmente revelador ou introspetivo, mas demonstra como, apesar das suas fragilidades, este filme consegue ser uma dolorosa visão de quatro indivíduos que passaram a vida a contribuir para a infelicidade uns dos outros e acabaram por se tornar em pessoas sem rumo. Pelo menos, no final, há sempre o raio de esperança dos dois irmãos, unidos e fortes contra o mundo, apoiando-se um no outro.
O MELHOR: Os momentos do documentário dentro do filme. Uma discussão entre um crítico e um académico é de particular destaque e parece saída diretamente de uma paródia de Christopher Guest.
O PIOR: Os elementos mais óbvios e metafóricos do guião e sua exploração da universalidade contida nesta particular dinâmica familiar.
Título Original: The Family Fang
Realizador: Jason Bateman
Elenco: Jason Bateman, Nicole Kidman, Christopher Walken, Maryann Plunkett, Jason Butler Harner, Kathryn Hahn
NOS | Comédia, Drama, Mistério | 2015 | 105 min
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