Cinema Europeu? Sim, por favor | 20,000 Dias na Terra
I’m transforming. I’m vibrating. I’m glowing. I’m flying. Look at me now.
Como uma espécie de homenagem ao 20.000º dia que o músico, cantor e compositor Nick Cave vive no planeta terra, o filme de Iain Forsyth e Jane Pollard, 20,000 Dias na Terra, define-se como um documentário mas torna-se numa introspeção muito mais comovente do que a realidade despretensiosa.
Com o próprio artista a narrar o filme, a peça que assistimos é uma retrospetiva pelo seu percurso de vida. Apesar de existir uma cena de entrevista com várias questões colocadas, que se equipara na verdade a uma consulta de psicologia, o documentário é claramente uma peça induzida que mistura a realidade com a ilusão – ou, pelo menos, com a filtragem propositada.
Revisitando a sua infância e juventude alegres e subversivas, Nick Cave guarda um carinho colossal pelas memórias da vida que afirma que nos tornam quem nós somos e nos lembram disso até aos últimos dias. Nas suas palavras, o seu maior medo é precisamente a evaporação das lembranças que têm o poder nos lembrarem de nós, quando já não temos grande capacidade de raciocinar.
Apesar de ser um homem de sonhos, cuja mente passa horas a fio a imaginar universos e sentimentos paralelos, de forma a criar narrativas exteriores a si, Cave é simultânea e estranhamente terra-a-terra. Está consciente de si e da sua evolução tanto como músico mas também como pessoa. Condena algumas atitudes do passado como o historial com as drogas e a sua arrogância, mas ao mesmo tempo olha com carinho para a sua versão jovem e ingénua, que descobria o mundo e as pessoas, a beleza e a tristeza.
Com 57 anos, o músico está no sítio onde devia estar e cresceu precisamente como devia crescer – não se tornou carrancudo nem fatalista, mas sim grato pela carreira, pelas pessoas, pelas oportunidades e por ser capaz de devanear, sempre que quiser.
Na película de 97 minutos não sentimos o fator documental devido à firmeza dos planos e ao cuidado dos enquadramentos, mas ficamos gratos por isso. Porque 20,000 Dias na Terra não é um simples documentário mas um poema à música e à nossa arte, toda a sua confeção cuidada se encaixa perfeitamente em cada palavra pronunciada e acorde tocado.
Apesar de focar a música, nas letras e processo criativo, o filme de Iain Forsyth e Jane Pollard tem uma musicalidade peculiar, pois acabam por não ser o centro de tudo. Mais importante que as melodias é a paixão pela arte. A intensidade que Cave quer retirar de cada concerto, as pessoas que quer marcar, os olhares, os toques, os saltos, os sussurros. O que importa é o momento em que sobe ao palco, onde tudo tem um significado diferente, que guarda para si com arrepios.
20,000 Dias na Terra, que recebeu os prémios de Melhor Realização e Melhor Montagem no festival de cinema de Sundance, começou quando os realizadores decidiram começar a filmar Cave em segredo no início das gravações do álbum “Push The Sky Away” de Nick Cave and the Bad Seeds, afirmando que não queriam destruir a mitologia em torno do ícone. Forsyth e Pollard haviam trabalhado com o músico anteriormente e, no momento em que o abordaram, tinham já muitas referências e a certeza de que não queriam realizar um documentário convencional.
Com algum improviso e muito mistério preso a Nick Cave, o documentário-drama britânico 20,000 Dias na Terra é também um despertar do espírito.
“Este espaço cintilante, onde a imaginação e a realidade se cruzam… Este é o lugar onde existe todo o amor, lágrimas e alegria. Este é o lugar. Este é o lugar onde vivemos.” (Nick Cave)