Como se Fosse um Romance | Mário Augusto em entrevista
Falámos com Mário Augusto, o principal rosto do jornalismo cinematográfico em Portugal sobre o livro “Como se Fosse Um Romance”.
Pela primeira vez na MHD entrevistámos um dos principais nomes do jornalismo cinematográfico em Portugal. É o rosto que todos estão familiarizados, cuja voz transporta-nos, com apenas duas ou três frases, para o universo das imagens em movimento. Obviamente já sabem de quem estamos a falar.
Nascido em 1963 em São Félix da Marinha (perto de Espinho), Mário Augusto é um nome indissociável do cinema no nosso país. Curiosamente, os portugueses quando pensam em cinema em Portugal, pensam sempre no jornalista da RTP. Isso talvez aconteça porque Mário Augusto sabe conquistar o público melhor do que ninguém e graças às suas reportagens e entrevistas, ajuda-nos a escolher os filmes do nosso serão ou a vincular-nos a um determinado ator ou atriz fetiche.
O seu trabalho com quase 40 anos de carreira é do mais puro serviço público, guiando-nos por tudo aquilo que se faz no cinema. A sua essência profissional bebe desta partilha com os espectadores. E falando em partilha, a nossa entrevista com Mário Augusto aconteceu no âmbito da apresentação do livro “Como se Fosse Um Romance“, no La Vie Funchal. Nesta sua primeira ida à Madeira, a convite da Direção Regional da Educação da RAM, Mário Augusto não quis perder a oportunidade de falar com o público sobre os grandes desafios deste seu projeto pessoal.
Mário Augusto não esconde a forma divertida, leve e descomprometida como estruturou “Como se Fosse Um Romance“. Esta obra essencialmente didática, é importante para quem procura colocar na sua estante um livro acessível, capaz de refrescar-nos a memória e de atirar-nos para os momentos mais pertinentes da grande aventura do cinema.
Desde os primórdios da arte, onde a ambição de se estampar uma imagem em movimento estava diretamente relacionada com a Revolução Industrial, até aos dias de hoje dominados pelo streaming, Mário Augusto faz uma apresentação delicada da 7ª arte. Conta-nos inclusive transformações sociais, políticas e culturais que influenciariam a arte mais completa de todas e muitos segredos de bastidores que deitariam por terra o sonho americano de muitas estrelas. Duas delas eram até portuguesas, os irmãos D’Algy, de quem Mário Augusto quis conhecer mais.
Em “Como se Fosse Um Romance” fica claro que o cinema não é uma arte do acaso. Todos os momentos tiveram uma razão de ser e conduziriam à formação da maior fábrica dos sonhos do mundo: Hollywood. Deixemo-nos envolver pelas suas palavras, que continuarão a impactar miúdos e graúdos cinéfilos de norte a sul do país.
MHD: Como nasceu “Como se Fosse Um Romance” e qual era o seu objetivo?
Mário Augusto: A Bertrand em abril do ano passado abriu-me as portas para a possibilidade de um novo livro e eu tinha o projeto de “Como se Fosse Um Romance“, que andava a escrever há sensivelmente um ano e meio.
Eu não queria contar a grande História do cinema, mas as várias estórias do cinema, como se fosse um romance. Tinha o título e queria evidenciar como esta arte tem drama, tem paixão, tem mistério, tem ficção científica. O livro é uma história do cinema à minha maneira, a fim de ajudar aqueles que não sejam especialistas ou historiadores, a ter uma percepção de como a arte evoluiu.
Quis mostrar o cinema desde o seu nascimento até ao seu futuro, mas é mesmo até ao futuro. Mostro que nada aconteceu por acaso, ou seja, houve uma razão para o cinema surgir. Precisava de fazê-lo de uma maneira agradável ao leitor, sem a obrigação académico-científico de justificar cada parágrafo. Os episódios continuam a estar devidamente contextualizados, mas havia necessidade de ir além disso.
MHD: Ao longo do livro fala também do cinema português e coloca ao mesmo nível os atores portugueses e os grandes nomes de Hollywood. O que o motivou a partilhar com o público a trajetória dos irmãos D’Algy?
Mário Augusto: O livro tem uma componente histórica, sem ser um livro de História. Como as histórias contadas são todas reais e foram confirmadas na investigação, achei que o percurso dos irmãos D’Algy era tão curioso e tão rico, que é uma pena não serem conhecidos em Portugal.
Atualmente falamos de Joaquim D’Almeida e de Daniela Ruah, mas já em 1916 tivemos duas estrelas em Hollywood. A própria Helena D’Algy contracenou e foi dirigida pelas grandes figuras da época. Quis dar o destaque que mereciam, até para celebrar esse período mágico do cinema. Tivemos dois portugueses em Hollywood com um papel tão importante que não os deveremos esquecer.
MHD: Estamos na Madeira e achei curioso não mencionar o Virgílio Teixeira no seu livro…
Mário Augusto: O Virgílio Teixeira foi para Hollywood mais numa experiência de toque e foge. A sua ida aconteceu num período em que já não era assim tão impressionante para os atores europeus fazerem pequenas participações em filmes americanos.
É verdade que falamos de um nome muito importante, uma pessoa que tinha imensos projetos em cima da mesa e que infelizmente nunca ninguém lhes deu luz verde. Acredito que o Virgílio Teixeira tinha tudo para ser uma grande estrela de cinema se não tivesse nascido em Portugal. De qualquer forma, parece ter tido algumas oportunidades precisamente porque nasceu em Portugal. Acho que precisava de um empurrão maior.
Entrevistei-o uma vez na vida e via-o como uma pessoa apaixonante e apaixonada pelo cinema. Ele foi para Hollywood e veio embora, enquanto que os irmãos D’Algy estiveram mais tempo e tiveram maior impacto.
Acabariam também por voltar a Portugal, e o Tony D’Algy participou em alguns filmes do cinema português dos anos 40, enquanto a irmã – que muitos acreditam ter regressado a Portugal para se casar – desapareceu completamente. Só apareceu no documentário “Imagénes Perdidas” da RTVE em 1991, sobre as estrelas do cinema mudo espanholas. Sendo filha de pai espanhol, Helena D’Algy terá-se nacionalizado espanhola e não portuguesa. Eu queria descobrir se existem ou não descendentes destes atores, porque seria muito interessante.
MHD: Além da fama efémera, Hollywood é também uma terra de muitas extravagâncias, escândalos e assassinatos. Qual acha que tem sido o maior desafio de Hollywood nos últimos tempos?
Mário Augusto: Para mim Hollywood tem uma sina muito grande, relacionada com a síndrome do sucesso. A síndrome do sucesso faz, muitas vezes, com que as pessoas fiquem cegas ou deprimidas quando ela não chega. Hollywood sempre se fez no equilíbrio mal amanhado entre esses dois pratos da balança. É uma terra muito dada ao glamour e ao encanto, e se repararmos bem, Hollywood é hoje tudo menos do que cinema.
Hollywood é uma montra, Hollywood é uma marca. Para bem e para o mal do cinema. Hoje o cinema é do mundo, e Hollywood trabalha apenas para manter o seu certificado. Para serem eles a darem o selo de sucesso a cada filme.
Sempre achei uma fraude, por exemplo, a questão dos Globos de Ouro, envoltos em polémica nos últimos meses. Perguntava-me como é que 70 pessoas podem influenciar um conjunto de filmes a serem nomeados para os Óscares… Aquelas pessoas já nem iam ao cinema e apenas interessava aos estúdios gerir o seu gosto. Quero dizer, 70 pessoas pareciam condicionar o voto de 5 mil votantes da Academia.
De repente, todos começaram a apontar o dedo aos Globos de Ouro e este ano foi a desgraça absoluta. Hollywood funciona muito desta forma.
MHD: Estamos na temporada de prémios, portanto será que nos poderia contar que filmes viu em 2021 e que filmes teve oportunidade de (re)descobrir?
Mário Augusto: Há filmes de 2021 que me seduziram, como “Licorice Pizza” do Paul Thomas Anderson ou o “Wes Side Story”, do Steven Spielberg, assim como alguns títulos que estiveram na entrega dos Óscares do ano passado.
Mas, na verdade, não fomos muito surpreendidos pelo cinema estreado em sala em 2021. Algumas das experiências mais curiosas acabaram por estar mesmo no streaming. Ao contrário do que muitos preconizavam, o streaming não é assim tão mau para o cinema. Alguns filmes jamais se veriam se não tivessem estreado no streaming. Com o streaming, os filmes podem ir para qualquer lado, para qualquer país. Ainda esta semana [dia 10 de fevereiro], a Netflix estreará em 198 países a série da RTP “Até Que a Vida Nos Separe”. De outra maneira, muitos desses países não veriam um conteúdo de ficção feito em Portugal com atores portugueses.
No que diz respeito às redescobertas, tenho visto alguns filmes que utilizo na rubrica “Essenciais” do programa “Janela Indiscreta”. Como já esgotei a minha lista óbvia, preciso obrigatoriamente de redescobrir algumas coisas.
Por causa da morte do Peter Bogdanovich, cineasta que tive oportunidade de me cruzar uma vez numa viagem de avião, revi “A Última Sessão“. Através destes visionamentos, acabo por perceber que, com a idade, alguns filmes ganham outra vida. Eu costumo dizer que só gasto dinheiro em filmes clássicos e dos filmes novos que vejo, são poucos os que acrescento à minha coleção.
MHD: Por isso é que no livro “Como se Fosse Um Romance” temos 125 filmes que são por si recomendados, que os seus leitores não podem mesmo perder.
Mário Augusto: Precisamente por causa dessa lista estou em pulgas para rever “O Padrinho“, não numa das versões em que atualmente está disponível, mas na versão restaurada 4K que sairá em breve. Eu já vi este filme do Francis Ford Coppola 5 ou 6 vezes, mas não faz mal. Vou ver outra vez (risos).
Acho que aqueles filmes clássicos que refiro no final de “Como se Fosse Um Romance” deveriam ser vistos inúmeras vezes, a fim dos próprios cinéfilos perceberem que a arte está em permanente mutação.
Um clássico não deixa de ser um clássico, enquanto alguns filmes novos que morrem à nascença. O clássico cheira-se ao longe. O “Magnólia” de 1999 do Paul Thomas Anderson tem mais de 20 anos e ainda cheira a vinho bom. Não há que enganar! Eu neste momento estou numa fase de redescobrir os clássicos.
MHD: Os próprios filmes de hoje são inspirados por filmes de ontem. Veja-se, por exemplo, como o “Licorice Pizza”, também do Paul Thomas Anderson é inspirado por “A Última Sessão” do Bogdanovich.
Mário Augusto: Exatamente. Depois existem situações engraçadas de termos cineastas como o Steven Spielberg a fazer a sua versão do “West Side Story”, que me seduziu. Acho que já no trailer é possível ver como estamos perante um cineasta fantástico, cujo trabalho do ponto de vista estética é qualquer coisa de abismal. No entanto, o clássico será sempre o clássico.
O Spielberg soube homenagear o clássico e acrescentou uma cobertura nova ao bolo, para que o filme respirasse. Infelizmente, o tempo de hoje não é para os clássicos.
MHD: O Mário Augusto descreve o seu livro como um livro de estórias. Algum episódio que lhe tenha surpreendido ao longo de toda a informação recolhida para a obra?
Mário Augusto: Já é difícil me surpreender (risos). Quando publiquei os outros livros como “Mais Bastidores de Hollywood: Histórias do Cinema e Outros Segredos das Estrelas“, há 16 anos atrás, já tinha algo que viria a aproveitar para este novo livro. Aí, contava um pouco da história do cinema em episódios mais curto.
Para “Como se Fosse Um Romance“, embora todo o processo de escrita do livro tenha demorado um ano e meio, ele já anda a ser escrito há muito tempo. Tiro uma história aqui, acrescento outra e, mesmo sendo exigente, consegui colocar os episódios por uma ordem cronológica. Eu limitei-me a ir à caixa do puzzle, desmontá-lo e tentar encaixá-lo novamente peça por peça. Depois de tudo estruturado como queria, peguei na lixa e coloquei verniz em cima.
MHD: Algo tão surpreende no livro é a forma como menciona os filmes de maneira indireta. Confia no autodidatismo dos leitores?
Mário Augusto: Para já não tinha mais espaço (risos). Lembro-me por exemplo de outro livro “A Sebenta do Tempo“, onde falo de inúmeras coisas e acho que qualquer pessoa que tenha vivido esse tempo irá identificar-se.
Um livro como este, não sendo uma obra académica sobre cinema, é seguramente um livro que vai acabar nas mãos das pessoas que têm alguma afinidade com esta arte. E tu podes dizer que todas as pessoas têm alguma afinidade com o cinema… Sim, existem pessoas que vão ao cinema para namorar, uns vão para dormir e outros para comer pipocas. Isso é uma particularidade da relação que temos com o cinema. Quando escrevi “Como Se Fosse Um Romance” fi-lo para pessoas que sabem minimamente alguma coisa sobre o cinema.
A linha condutora que utilizei para o livro é aquilo que o cinema me ensina. Eu faço televisão porque o cinema ensinou-me a contar histórias. É no cinema que vou buscar inspiração para as minhas reportagens. Em breve vou publicar um livro que surgiu neste sentido. Eu vejo sempre cinema nas coisas que faço.
MHD: Além do livro, o Mário Augusto está também responsável pelo programa Janela Indiscreta tenho a certeza que os leitores da Magazine.HD acompanham o seu programa. O que poderemos esperar do magazine de cinema mais antiga da televisão portuguesa em 2022?
Mário Augusto: Eu gostava de acrescentar mais conteúdo nacional. Gostaria de acompanhar a rodagem de filmes e sobretudo séries portugueses, porque o fenómeno está a acontecer. Mas não posso esquecer que faço o programa completamente sozinho. Toda a equipa técnica que está associada, é aquela por detrás da câmara e que também faz a edição final.
Eu gostava muito, de um dia, fazer um talk-show sobre o audiovisual propriamente dito, que metesse cinema, cultura pop… Hoje mais do que nunca tudo isto faz parte daquilo que o professor Joseph Nye apelidava de soft power e que inclui ainda as plataformas de streaming e até as redes sociais.
Acredito que a televisão vai evoluir por um caminho completamente diferente àquela que estamos habituados a ver. O streaming é apenas um passo. Tu vais chegar a casa e pedir a uma espécie de Alexa ou Siri, as notícias nas quais tens interesse. Eu gostaria de contribuir de certo modo para esse processo de transformação que iremos assistir.
Não quero contudo esquecer que o “Janela Indiscreta” é um sensivelmente magazine de divulgação de cinema. Eu já tive de o reinventar, aquando do primeiro confinamento e tive que andar às voltas dos clássicos para vermos em casa. Nos últimos tempos tenho feito alguns segmentos com séries antigas e que têm funcionado imenso em termos de audiências. A matriz do programa continuará ligeiramente a mesma, afinal já é assim há 19 anos.
MHD: Que palavra ou palavras utilizaria para falar dos 125 anos do cinema?
Mário Augusto: Só uma, magia. O cinema é a magia. A magia o que é? É aquilo que vemos e nos encanta, não sabemos como, mas gostamos de ser enganados.
A magia do cinema é uma história que nos seduz e não sabemos explicar porquê. Mas aquilo agarra-se à nossa alma e mexe com os nossos sentimentos, mexe com os nossos pensamentos e mexe com todas as nossas ações.