A Portuguesa, em análise
Depois da recente apresentação no Forum da Berlinale 2019, a realizadora portuguesa Rita Azevedo Gomes estreia agora nas salas nacionais ‘A Portuguesa’, um desafio literário, entre Musil e Agustina, que resultou num filme belo e sofisticado.
Rita Azevedo Gomes (n.1952), a realizadora de ’Vingança de uma Mulher’ (2012) e ‘Correspondências’ (2016), tornou-se uma referência internacional no feminino do Cinema Português do Século XXI, apesar de fazer filmes há muitos anos. ‘A Portuguesa’, o seu novo filme estreado na Europa — teve uma antestreia no Festival Mar del Plata (Argentina) em Novembro de 2018 — praticamente abriu a secção Forum da Berlinale 2019. Trata-se de uma obra baseada num conto do escritor austríaco Robert Musil, que a escritora Agustina Bessa-Luis adaptou ao cinema, introduzido-lhe alguns elementos do seu universo literário muito particular.
Trata-se efectivamente de uma arriscada transposição de um texto-chave, enigmático e com poucos diálogos da obra literária de Robert Musil, que Agustina ‘remexeu’ à sua maneira e Rita Azevedo Gomes reconstruiu com imagens simuladas de uma beleza extraordinária. A história de um tal Herren von Ketten (Marcello Urgeghe, numa acertada escolha e competência para o papel), um nobre italiano que em plena Idade Média suportou historicamente um longo conflito com o Episcopado de Trento. Viciado na guerra, von Ketten procurou uma esposa fora do seu país e encontrou uma jovem portuguesa (Clara Riedenstein numa brilhante interpretação para uma atriz tão pouco experiente), com um comportamento muito peculiar para a época, que se vai instalar no seu castelo do norte da Itália. No entanto, o marido sai para o campo de batalha e só regressará em condições muito precárias, cerca de 11 anos depois. Enquanto isso, a sua jovem esposa, pela sua diferença e ousadia, é acusada de várias leviandades pouco próprias para uma mulher daquela época.
O filme de Rita Azevedo Gomes é em primeiro lugar um excelente casamento de dois universos literários distintos, combinados com uma visão pictórica e colorida da pintura clássica — diz-se que o conto de Musil foi mesmo inspirado no quadro da Rainha Isabel de Portugal, que está no Museu do Prado, em Madrid — centrado no tema das questões que dizem respeito ao papel das mulheres, num mundo que há séculos permanece sempre dominado pelos homens. Tema esse, que tem sido aliás uma constante nas obras anteriores da realizadora. Na verdade, ’A Portuguesa’ propõe-nos uma viagem a um tempo em que as mulheres tinham apenas alguns papéis estabelecidos e que algo como pensar ou agir de uma maneira diferente ou violar a ordem social imposta, era motivo de punição e rejeição. Apesar do seu ritmo lento e dos 136’ de duração — algo que o público-médio de cinema terá dificuldade em suportar — ‘A Portuguesa’ é um filme de uma beleza extraordinária: cada plano geral faz lembrar um quadro de Ticiano ou de outros grandes pintores renascentistas, mas ao mesmo tempo a sua estética é muito ousada — especialmente no sentido coreográfico —, sempre bem acompanhada de diálogos pausados e longos, quadros teatrais cantados que são muito inspiradores, aliás como todas as belas cenas que vão desde uma simples refeição ou caminhada na floresta, à intimidade de um banho feminino. Talvez a maior das contradições esteja entre o registo histórico do filme e a intercalação dos quadros interpretados pela carismática cantora e actriz alemã Ingrid Caven, com a música de José Mário Branco. Contudo, parece ter sido uma opção propositada ou um mero pretexto da realizadora para trabalhar com a diva alemã.
Em ‘A Portuguesa’, a bela esposa ruiva é mostrada como uma heroína sedutora e sensual, digna dos nossos tempos em que as mulheres deixaram de ser submissas, mas que não têm de se tornar necessariamente umas rebeldes manipuladoras, contra os homens. Tudo é dirigido com uma enorme delicadeza e o estilo surpreendentes dos cenários — e das belíssimas localizações escolhidas em Portugal — testemunham em cada cena a vontade de esta mulher só quer ser livre, continuar a sua vida em paz e amar. O filme é marcado ainda por algumas representações corais, ao estilo do teatro clássico grego, que lhe dão uma dimensão de grandiosidade, — inclusive num excelente e apropriado guarda-roupa de época — que na verdade não existe em termos de produção. No entanto, o seu enorme mérito está em recriar uma rigorosa produção histórica e sobretudo na preciosidade da fotografia do ‘mestre’ Acácio de Almeida que cria imagens quase como que imersas numa paleta de cores primárias, onde se destacam em primeiro lugar os cabelo das mulheres — sobretudo da protagonista e não deve ser uma coincidência as semelhanças com ‘Orlando’, de Sally Potter e com Tilda Swinton —, cabelos esses que contrastam com os belos espaços verdes, as pedras cinzentas envolventes e edifícios históricos, já corroídas pelo tempo. A juntar a isto tudo estão talvez também a inspiração nos filmes históricos de Roberto Rossellini (‘A Idade dos Medeci’, 1972 , ’Viva a Itália’, 1961 ) ou mesmo de Eric Rohmer (‘A Inglesa e o Duque’, 2001). São excelentes as interpretações secundárias de Rita Durão e Pierre Léon num amplo elenco, que ajuda igualmente ‘A Portuguesa’, a tornar-se numa brilhante e ambiciosa exibição visual, estilística e narrativa do cinema português do século XXI.
JVM
'A Portuguesa', em análise
Movie title: A Portuguesa
Date published: 28 de February de 2019
Director(s): Rita Azevedo Gomes
Actor(s): Marcello Urgeghe, Clara Riedenstein, Rita Durão, Pierre Léon
Genre: Romance, Histórico, Drama, 2018, 136 min
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José Vieira Mendes - 75
CONCLUSÃO:
‘A Portuguesa’ é sem dúvida um filme belíssimo no que se refere às suas personagens, e sobretudo muito sofisticado nos seus diálogos, quase sempre marcados por inúmeras referências à arte renascentista, literatura e misticismo.
O MELHOR: A extraordinária combinação pictórica entre os personagens e os ambientes marcados pela memória e pelo tempo.
O PIOR: A duração necessária, mas que para o espectador-médio pode parecer longo e maçador.
JVM