Black Mirror, quinta temporada em análise
A temporada mais fraca de “Black Mirror” trabalha a tríade família, fidelidade e fantasia/ sexualidade, vê Andrew Scott brilhar num episódio competente em que o peso de uma vida corresponde à leveza de uma notificação, e apresenta ainda o pior episódio da série até ao momento.
Tudo começou com um porco e um primeiro-ministro. Ganharam-se créditos a pedalar para participar num programa de talentos, vimos as consequências numa relação de um implante capaz de gravar e reproduzir as nossas memórias, assistimos a um luto diferente e ao loop de uma criminosa que se esqueceu que o era e virou fonte de entretenimento. Um cartoon entrou na política (não estou a falar de Trump) e dois homens trocaram histórias do seu passado em dia de Natal. Entre Dezembro de 2011 e Dezembro de 2014, “Black Mirror” foi isto. A primeira vaga de episódios, emitida no britânico Channel 4 e mais “suja” ou com valores de produção inferiores, pode ser vista como uma amostra mais coesa. Embora com tiros ao lado (sim, “The Waldo Moment”, és tu), eram raros os capítulos que não ficavam connosco no pós-episódio.
A primeira maré teve 7 episódios, a segunda trazida pelo amplo mar de conteúdos que é hoje a Netflix, já nos ofereceu mais do dobro (15). Infelizmente, tem-se registado uma tendência na série de Charlie Brooker – a temporada 3 foi superior à 4 e a temporada 4 foi superior a esta 5. Curiosamente, enquanto quase todos os grandes episódios do período pré-Netflix tinham em comum uma visão pessimista e negativa ou um twist perturbador, o compêndio construído para a plataforma de streaming, sem negar esse ADN (“Shut Up and Dance” ou “Black Museum”), atingiu os seus picos de aclamação com histórias genericamente positivas – “Hang the DJ” e, claro, “San Junipero”.
Antes de estrear esta quinta temporada, convém relembrar que houve “Bandersnatch”, o filme interativo que deixava percorrer – umas vezes mais do que outras – um caminho com tom bastante negro. No geral, a 5ª temporada transmite sobretudo a ideia que Charlie Brooker tem hoje menos para dizer, soando menos refrescante, inovador e independente. É possível que o autor se sinta hoje mais realizado e feliz com a sua vida (e ainda bem que assim é) transpirando isso para o papel, para o guião.
Na verdade, embora a série nos tenha habituado, qual Pavlov, a ficarmos de pé atrás à espera do inevitável twist, “Black Mirror” não precisa per si de ser negativa ou pessimista. Precisa sim da criatividade de sempre, de boas histórias que acrescentem algo e fiquem com o espectador nos dias ou semanas seguintes ao ecrã ir a preto, evitando reciclagens. Efetivamente, os 3 episódios desta temporada são mais aquilo que “Black Mirror” não precisa de ser do que aquilo que já foi.
Confesso: quando em meados de Maio a Netflix anunciou que esta temporada teria apenas 3 episódios, num fantástico trailer com o clímax atingido ao som da “Lonely Feelings” dos Love Supreme, assumi que a opção por reduzir para metade – as temporadas 3 e 4 tiveram 6 episódios cada – estaria relacionada com uma elevada confiança no material, indo all-in com “Striking Vipers”, “Smithereens” e “Rachel, Jack and Ashley Too” e privilegiando qualidade em relação a quantidade.
Embora “Smithereens” seja o episódio mais competente da temporada, “Striking Vipers” é o mais inovador e aquele que introduz ideias novas mais interessantes no universo da série. Sobre o terceiro e último episódio, digamos que podia ter sido escrito pela filha de Charlie Brooker. Uma observação que serve apenas para passar a mensagem, tratando-se de uma impossibilidade uma vez que Brooker tem na verdade dois filhos rapazes, de 5 e 7 anos.
Mas comecemos por “Striking Vipers”. Realizado por Owen Harris (já tinha assumido “Be Right Back” e “San Junipero”), o episódio protagonizado por Anthony Mackie, Yahya Abdul-Mateen II e Nicole Beharie, sem esquecer o contributo da guardiã da galáxia Pom Klementieff e de Ludi Lin, levanta excelentes questões, cuja concretização fica depois a meio gás ou deixa a desejar. Brooker abre uma porta carregada de potencial ao tocar na tríade família, fidelidade e fantasia, sempre com o tema da sexualidade adjacente. Servindo-se de videojogos e de uma forma de realidade virtual avançada coloca interrogações desconfortáveis mas ricas por darem aso a discussão: traição num jogo é traição? Um homem heterossexual que tem relações com um amigo num videojogo em que ambos têm os corpos dos seus avatars, um homem e uma mulher, passa por isso a ser homo ou bissexual? “Striking Vipers” aprofunda pouco questões que chega a levantar como a ideia de experimentação, a noção de sentir na realidade vs. sentir num jogo, não explora minimamente o facto de Karl escolher sempre Roxette, e deixa passar a hipótese dramática do que seria outro membro da família Parker jogar o jogo com Karl.
“Smithereens” é acima de tudo um episódio carregado pelo sempre incrível Andrew Scott. Vulnerável, explosivo e fora de controlo, o ator que em 2019 já tinha contribuído para fazer de “Fleabag” uma das melhores séries deste ano, desfaz-se em toda a sua amplitude de emoções para elevar um episódio pouco subtil, com pouco sumo e algo óbvio. Se por exemplo “Nosedive” tinha refletido sobre as redes sociais numa ótica de comparação e procura de aceitação pelo outro, “Smithereens” foca-se no hábito ou vício, no lado mais orgânico da cultura de redes sociais – a distração em relação ao mundo real e as consequências de termos a cabeça sempre orientada para baixo, para um ecrã. Além do desempenho de Scott, destaca-se um final ambíguo que é também um dos melhores remates de Charlie Brooker – o peso de uma vida representado com a leveza de uma notificação, lida e esquecida um segundo depois, por um mundo que tenderá a não mudar.
Sobre “Rachel, Jack and Ashley Too” quanto menos se disser, melhor. Os Nine Inch Nails parecem ter sido os únicos a ganhar com um episódio que é a meu ver o pior dos 22 da série. Uma pena porque Angourie Rice (“Bons Rapazes”) e Madison Davenport (“Sharp Objects”) são atrizes que prometem bastante, e o casting de Miley Cyrus levava a crer que seria trabalhada de forma inteligente a sua persona como meta-comunicação. A norueguesa Anne Sewitzsky, a única realizadora estreante no universo “Black Mirror” entre os 3 desta temporada, não teve propriamente culpa, dado que o texto não dava para muito mais.
Acidente de percurso ou primeiros sinais de um período de seca criativa de Charlie Brooker? A admiração que tenho pelo autor britânico faz-me confiar na primeira opção. E, embora diga mais sobre a concorrência do que sobre o estado actual de “Black Mirror”, não deixa de ser revelador que esta temporada (fraca) seja mesmo assim superior ao novo player , o recuperado “The Twilight Zone”, que desiludiu este ano como “Electric Dreams” desiludira entre 2017 e 2018. Que a próxima fornada seja melhor.
TRAILER | “BLACK MIRROR”
Achaste esta temporada de “Black Mirror” ao nível das anteriores? Qual foi o episódio que mais gostaste?
Black Mirror - Temporada 5
Name: Black Mirror
Description: Três novas histórias da série de antologia que cruza as grandes inovações tecnológicas da humanidade com os seus instintos mais obscuros.
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Miguel Pontares - 67
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Inês Serra - 50
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Maria João Sá - 75
CONCLUSÃO
O MELHOR – A performance de Andrew Scott em “Smithereens” e as desconfortáveis mas ricas interrogações que “Striking Vipers” levanta, ficando depois a meio gás na sua concretização ou exploração.
O PIOR – “Rachel, Jack and Ashley Too” é o mais fraco dos 22 episódios da série.