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Campo de Sangue, em análise

O realizador, professor e ensaísta João Mário Grilo faz um duplo regresso, primeiro com estreia há poucos dias do documentário ‘Vieirarpad’ e agora com a longa-metragem de ficção ‘Campo de Sangue’ uma adaptação (muito) cinematográfica, mesmo que lhe chamem uma fantasia, da primeira obra da notável escritora Dulce Maria Cardoso. Estreia a 23 de junho.

Em primeiro lugar sauda-se com orgulho o renascer de uma geração de ensaístas, estudiosos e artistas nascidos na década de 60, neste duplo regresso do realizador português João Mário Grilo (63 anos) às salas de cinema, sobre um romance der Dulce Maria Cardoso. Grilo, estreou recentemente o documentário ‘Vieirarpad’, sobre o famoso casal de artistas plásticos Vieira da Silva/Arpad Szenes; e agora Campo de Sangue’, a sua primeira longa-metragem de ficção, depois de mais de uma década, desde ‘Duas Mulheres’ (2009), uma vez que todas as outras obras mais recentes que realizou, são documentários. Esta longa-metragem ‘Campo de Sangue’ é produzida por Ana Pinhão Moura e descrita como uma ficção inspirada ‘numa fantasia de Dulce Maria Cardoso’ (‘O Retorno’) — uma das mais originais e transgressoras vozes femininas da literatura portuguesa da actualidade — e no seu primeiro e premiado romance homónimo, publicado em 2002.

Campo de Sangue
Carloto Cotta e Alba Baptista num dos momentos de sedução do homem no Jardim da Estrela. ©Leopardo Filmes

Foram quase 6 anos de jejum e de uma pequena travessia no deserto de criação cinematográfica de João Mário Grilo — comum a outros realizadores e produtores, quase sempre dependentes, em boa parte, do sistema de financiamento do Estado ou da Gulbenkian, ao cinema português — depois da sua passagem pelas curtas com ‘Não Esquecerás’ (2016), para a RTP, um homenagem às vitimas da queda da Ponte de Entre os Rios; e o documentário A Vossa Terra (2016), uma extraordinária homenagem ao arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles (1922-2020), outra que foi uma das grandes figuras da cultura e da arquitectura portuguesa. Aliás, tem sido uma constante no percurso deste cineasta, professor e ensaísta, que começou com a surpreendente longa-metragem ‘Maria’ (1979). Desde então, realizou mais de quinze filmes, entre longas e médias metragens de ficção e sobretudo documentários, nos domínios das artes, da literatura e da arquitectura. João Mário Grilo assinou ainda, alguns dos filmes mais marcantes do cinema português, sempre com uma preocupação de agradar aos espectadores, e sem fazer concessões ao banal e ao considerado ‘comercial’, por alguma ortodoxia crítica. Filmes como ‘A Estrangeira’ (1982), ‘O Processo do Rei’ (1989), ‘O Fim do Mundo’ (1993), ‘Os Olhos da Ásia’ (1996), ‘Longe da Vista’ (1998), estiveram aliás nas selecções oficiais dos mais importantes festivais internacionais de cinema: Cannes, Berlim, Veneza, Toronto e Locarno e foram razoáveis sucessos na bilheteira nacional. Agora os tempos são outros! Porém, a sua última longa-metragem de ficção ‘Duas Mulheres’ uma turbulenta história de amor no feminino, com Beatriz Batarda e Débora Monteiro, já data de 2009 e passou discretamente pelas salas de cinema nacionais.

VÊ TRAILER DE ‘CAMPO DE SANGUE’

A estreia deste seu novo filme, que adapta ‘Campo de Sangue’, o primeiro romance de Dulce Maria Cardoso, era muito aguardada e ansiada pelos admiradores da obra da escritora, quanto pelos fiéis aos filmes de João Mário Grilo. Mas uma coisa é a literatura outra coisa é o cinema. E nesse sentido, é quase impossível nos desligarmos completamente do primeiro livro da escritora, mesmo que o primeiro e grande mérito deste filme de João Mário Grilo, seja não afastar-se do essencial da obra, mas acrescentar-lhe mais alguma coisa: isto é pegar numa personagem desse romance (ou tragédia) escrito no passado, dar-lhe vida no presente, para atormentar a sua escritora — representada também como uma personagem do filme — revivendo de certa maneira com ela e com outras três (ou mais) mulheres, a história de um crime, vagamente inspirado na nossa realidade nacional e num fait divers lisboeta, passado, salvo erro, na década de 80. Recorde-se que a escritora é jurista de formação e como tal tem certamente, um manancial de histórias para contar, neste contexto.

Campo de Sangue
Adriano Luz é o juiz de instrução que interroga as mulheres, sobre o comportamento do acusado. ©Leopardo Filmes

Um homem (Carloto Cotta) é acusado de um assassinato brutal e entretanto aguarda em prisão, o seu julgamento, enquanto na sala de espera do tribunal, estão quatro mulheres — figuras extremamente verossímeis, aliás — que se relacionaram com o acusado. Todas elas são muito diferentes e nunca se conheceram antes — ‘(…) se por acaso se encontrassem na rua não se cumprimentariam’ —, apesar de todas se terem envolvido de uma forma ou de outra com o mesmo homem. Elas aguardam a sua vez para prestarem os seus depoimentos, sem falarem umas com as outras. Parecem perdidas nos seus pensamentos e não queriam estar ali, naquele momento. Todas têm objectivos diferentes e cada uma delas a sua história pessoal de relacionamento mais ou menos turbulenta, com esse homem. Talvez por isso, nenhuma dessas mulheres parece estar muito preocupada com o futuro desse homem, acusado de um crime. Sem sombra de dúvida, elas estão mais absortas nos seus próprios problemas. A vivência de cada uma, acaba por revelar-se no interrogatório, através da dificuldade de traduzirem, em palavras os seus sentimentos e emoções, em relação aquele homem. Se a questão se centra naquele possível criminoso, cada uma delas no fundo vai servir também para definir um modelo de critica social de como a sociedade se comporta, perante um crime e, como esta aceita facilmente o tradicional papel da mulher ou da relação homem-mulher: mãe-mulher-amante, submissa ou dependente afectivamente ou financeiramente. Em vários momentos, percebe-se a intenção de desmontar certos padrões socialmente impostos: no arquétipo materno, tradicionalmente espera-se que a mãe-mulher-amante, seja a que traz conforto e proteção. Na sua teoria dos arquétipos do inconsciente coletivo, o filósofo Carl Jung, mostra-nos que a figura da mãe, pode revelar bondade, mas também há nela um lado obscuro e subversivo, que vamos também sentir no filme de João Mário Grilo, quando observamos o estranho comportamento destas ‘mulheres-ninfas’ e ‘mulheres da água’ que acabam por levar esse homem à perdição. Aliás a água, a praia, a lagoa, as salinas estão sempre presentes no filme.

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Campo de Sangue
Uma atormentada mãe (Fernanda Neves) a quem o filho só conta o que quer. ©Leopardo Filmes

Assim, a primeira que conhecemos é Eva (Suzana Borges), a ex-mulher, uma personagem esquiva e que de certo modo, torna-se um pouco marginal, que comporta-se como se fosse uma amante, que sempre acabou por sustentar ou dava presentes a esse homem, sabe-se lá porquê, mesmo depois de ter voltado a casar com outro; uma atormentada mãe (Fernanda Neves), para quem o homem-filho, um mentiroso nato, vai inventando sempre uma vida diferente da que leva na realidade e que finge acreditar ou melhor é-lhe indiferente a situação; a dona-da-casa (Teresa Madruga), que se preocupa em ‘tomar conta dele’ e em lembrá-lo de pagar a renda do quarto, antes de ele sair para o ‘trabalho’ e que vê agora, ao contar a sua história, uma oportunidade de se tornar famosa; uma rapariga jovem e bonita (Sara Carinhas) que aceita a situação de estar grávida de um filho, que este homem nunca quis ter, porque é muito mais velho e não quer compromissos; e por último no filme temos a figura da escritora-protagonista-personagem (Luisa Cruz), que acaba por se surpreender pelo monstro que criou e tornar-se ela a principal vítima das manipulações e acções desse homem no fundo perigoso, perverso e sedutor. À partida a acção de ‘Campo de Sangue’ é assustadoramente banal e mundana, como aliás no romance, que às vezes vai mesmo ao pormenor. Também vale a pena estar atento a esse aspecto no filme de João Mário Grilo, pois ajuda-nos a compreender melhor esta história que fica um pouco em aberto: temos a história das quatro mulheres que se encontram reunidas na sala; e é aos poucos que o espectador vai sabendo, o motivo desse encontro ocasional, que faz parte de uma investigação conduzida por um juiz (Adriano Luz). A estrutura do filme também não segue uma lógica tradicional: há a personagem de um ou dois narradores (Luis Lucas e Rui Morrison) que nos conduzem a(s) história(s) e apresentam as personagens, ao mesmo tempo que a escritora-personagem vai observando e acompanhando, com a sua presença discreta, em alguns momentos as situações, os diálogos e a própria voz das mulheres, na sua interação com essa espécie de ‘homme fatal’, lisboeta. O filme, tal como no romance tem uma organização muito peculiar em relação ao tempo e ao espaço.

Campo de Sangue
O encontro entre o criminoso e a sua criadora. ©Leopardo Filmes

O espectador só conhece a história a partir de fragmentos, que vão recuperando os acontecimentos do passado e que de certo modo nos levam a compreender a postura dessas mulheres e do perturbado e inseguro comportamento do homem. Contudo, não há nenhuma intenção de se alcançar uma verdade absoluta dos factos e na investigação: cada uma das mulheres conta a história à sua maneira, demonstrado cada uma de uma forma um tanto  velada os seus sentimentos e o tipo de relação com o acusado. Por isso, torna-se difícil preferir esta ou aquela personagem ou colocar-nos do lado da infelicidade ou despropósito delas na situação em que se encontram. Todas são igualmente culpadas e igualmente vítimas das suas escolhas, perante aquele homem e todas são protagonistas das suas próprias histórias, contadas cada uma à sua maneira. Na verdade é a escritora-protagonista que com o seu olho clínico, entre zoom in e zoom out — não surpreende que o livro tenha sido visto logo como uma potencial adaptação ao cinema — que vai descrevendo melhor e participando também nos acontecimentos, mesmo que acabando de certo modo por ser surpreendida ou melhor tornar-se a principal vítima deles. O romance virou-se contra ela! Neste filme, há um crime, amantes, enganos e traições, tudo temas que preencheriam facilmente capas e artigos de um jornal, como o Correio da Manhã — e agora também as reportagens da CMTV, que aliás é curiosamente parceira ou co-produtora do filme — que são tratadas de forma brutalmente humana, próxima e até íntima — talvez este o sucesso de audiências deste media e possa ser também o sucesso do filme — enquanto que na narrativa fílmica, tudo se vai desenvolvendo demasiado lentamente — talvez esteja aqui um senão — como um ‘ato de esperar’, pelo que vai acontecer no futuro. Neste sentido o tema de ‘Campo de Sangue’ é também o existencialismo, o determinismo do destino, apesar das opções de cada um e do livre arbítrio. O filme é também uma boa história sobre o universo feminino, que toma como fio condutor a tragédia de um homem, cuja vida pode resumir-se a gastar tempo sem objectivos e numa verdadeira ‘fuga para a frente’. Ora nas ruas da cidade, ora na praia, ou caminhando lentamente absorto, pelas belas, insólitas e solitárias paisagens — nas acastanhadas estradas de terras do sul, através dos montes alentejanos e do montado ou nas brancas salinas algarvias — sem fazer nada e simplesmente, vivendo assolado por um ‘medo cronometrado’ e um perturbado desespero.

Campo de Sangue
A escritora acaba por ser surpreendida pelo monstro que criou. ©Leopardo Filmes

O homem cometeu um crime — ou pelo menos somos levados a crer que sim, pelo menos na cabeça da escritora-protagonista — e é esse mesmo ‘homem medricas’ que, quando corta o pé num vidro na praia observado uma bela ‘sereia’, fica enojado com o seu próprio sangue ou que chega mesmo a ter pavor de ver o seu corpo mordido, pelas picadas dos insectos. Por sua vez, as mulheres parecem mais fortes, sobretudo quando o homem é acusado, elas prestam os seus confusos e contraditórios depoimentos: algumas comportam-se como incrédulas, outras estão perfeitamente convictas da culpa dele e delas indirectamente. ‘Campo de Sangue’ é isso mesmo uma criação de narrativas pessoais, transportadas para o cinema com muito cuidado e mestria, sobre um mesmo acontecimento, em tons de mistério, suspense e thriller psicológico de uma personagem-escritora à procura do assassino que criou. É ao mesmo tempo, um filme coral e feito as várias vozes — destaque para a interpretação de todo o elenco feminino [Luísa Cruz, Sara Carinhas, Teresa Madruga, Susana Borges, Alba Baptista, Júlia Palha], que conseguem tornar as suas personagens bastante fortes e credíveis — e visto por vários ângulos, sobre um mesmo fait divers.

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Campo de Sangue
As mulheres da água (Sara Carinhas e Júlia Palha) que levam o homem à perdição. ©Leopardo Filmes

Porém o filme pretende também, recuperar (ou esconder factos) procurando que eles façam sentido, numa acção que nos parece por vezes estranha, quando enquadrada no comportamento evasivo e nostálgico desse estranho personagem masculino igual a tantos homens comuns. Cotta, faz aliás, lembrar um pouco o personagem interpretado pelo saudoso Canto e Castro em ‘Longe da Vista’ (1996), um filme outro filme de Grilo, sobre a solidão e a amargura da prisão; e também recorda um pouco Meursault, de ’O Estrangeiro’ de Albert Camus, adaptado ao cinema por Luchino Visconti (1967), um personagem que mata porque mata, sem saber muito bem o porquê?. Esta personagem, além de muito bem encarnada por Cotta,  parece ter sido criada à medida do físico, do rosto e da gestualidade do actor de ‘Diamantino’. Esta é mais uma notável interpretação de um dos actores do momento e talvez dos mais requisitados actualmente pelos cineastas portugueses. ‘Campo de Sangue’ remete ainda e recorde-se, para o lugar em Jerusalém onde os estrangeiros eram sepultados, lugar este comprado com o dinheiro que Judas tinha recebido para trair Jesus, entregando aos sacerdotes, para depois com remorso, se enforcar. O argumento de ‘Campo de Sangue’, de João Mário Grilo, inspirado no romance de estreia de Dulce Maria Cardoso, foi escrito pelo realizador, juntamente com Luís Mário Lopes e Inês Beleza Barreiros, e tem a música original de Mário Laginha, uma sonoridade e uma excelente banda-sonora, que acrescenta muito ao permanente ambiente de tensão e mistério do filme. Estreia a 23 de junho nos cinemas.

JVM

Campo de Sangue, em análise
Campo de Sangue

Movie title: Campo de Sangue

Movie description: ‘Campo de Sangue’ de João Mário Grilo, a partir do romance de Dulce Maria Cardoso, conta a história de uma personagem de um romance escrito no passado, que ganha vida no presente para atormentar a autora, revivendo e revisitando com ela a história de um crime passional ou meramente existencial.

Date published: 17 de June de 2022

Country: Portugal, 2022

Duration: 87 minutos

Director(s): João Mário Grilo

Actor(s): Carloto Cotta, Luisa Cruz, Suzana Borges, Teresa Madruga, Fernanda Neves, Sara Carinhas, Júlia Palha, Alba Baptista, Adriano Luz

Genre: Drama, Mistério, Thriller

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  • José Vieira Mendes - 80
80

CONCLUSÃO

‘Campo de Sangue’ é um regresso de João Mário Grilo à longa-metragem de ficção, depois de mais de uma década, praticamente no documentário. O filme ‘Campo de Sangue’ segue em parte o romance, mas como ficção trata-se de uma combinação de uma história real de um crime e de uma notável inspiração cinematográfica numa fantasia do universo das (várias) personagens femininas de Dulce Maria Cardoso, estas mesmo que deram origem ao premiado romance que a escritora publicou em 2002. Trata-se da história de um ‘homem das mulheres’ perdido nas influências do arquétipo feminino e sobretudo sobre as memórias de uma escritora, que começa por ser uma observadora implacável, passa a intervir e acaba por ser surpreendida, quando tudo parece virar-se contra si. O filme parece um pouco sórdido e banal, mas há muito mais do que isso, neste ensaio existencialista sobre esta história de um crime, que bem poderia ser tema de capa dos jornais ou das reportagens televisões sensacionalistas. Sem que isso por mim traga algo de mau ao cinema ou à literatura portuguesa contemporânea, antes pelo contrário, a realidade pode ser tão ou mais interessante que ficção. Espero que o continuem a provar isso mesmo, artisticamente, tantos os livros de Dulce Maria Cardoso, como os filmes de João Mário Grilo. Bem hajam!

Pros

O tema, a adaptação, a realização simples e discreta, dando espaço à intrincada e complexa construção narrativa. Sobretudo destaque para a notável e verosímil interpretação de todo o elenco, mesmo aquele que, praticamente não tem diálogos.

Cons

Os passos da narrativa são lentos e pormenorizados e isso é fundamental para a compreensão do enredo, mas já se sabe que não joga muito a favor do espectador menos habituado este ritmo e que quer sempre mais acção. Porém aqui os silêncios e  as pausas lentas, valem ouro.

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