Daredevil, terceira temporada em análise
Curioso, criminoso e escandaloso o destino (cancelamento) que “Daredevil” teve depois de nos oferecer a melhor temporada alguma vez vista numa série Marvel-Netflix.
Deixa saudades. O ano televisivo de 2018 representou o adeus de poucas séries com significa expressão ou potencial: entre as mais conceituadas da atualidade, o fim de “The Americans” chegou pensado e ao fim de seis temporadas em que o FX deu aos autores tempo para descobrirem e encontrarem a alma da série. Entre os cancelamentos, coube à Netflix tomar as duas decisões mais incompreensíveis do ano – cortar as pernas a “Daredevil” e “American Vandal”. A comédia fora até aqui uma série de nicho, mas “Daredevil” era um fenómeno de popularidade, com uma intensa e dedicada audiência.
Quando em dezembro de 2017 a Disney anunciou a sua intenção de adquirir a FOX, imediatamente se percebeu que o setor dificilmente voltaria a ser o mesmo. Pé ante pé a caminho de um monopólio, algo que devia ser evitado o combatido, a Disney vende hoje infâncias – conjugação da comercialização simultânea Pixar, Star Wars e Marvel. Porém, embora a sua oficialização tenha ocorrido recentemente, o fim de “Daredevil” aconteceu quando em agosto de 2017 a Disney anunciou a sua própria plataforma de streaming, o Disney+. Determinada em combater o grande player (Netflix) num mercado em galopante emergência, a Disney prontamente quis separar as águas, garantindo que os seus conteúdos seriam retirados da Netflix quando o Disney+ arrancar (2019). Se para a maioria dos projetos e autores não havia grande alarme, o divórcio levantava uma grande interrogação: como seria a custódia partilhada dos filhos Matt Murdock, Jessica Jones, Luke Cage, Danny Rand e Frank Castle?
Poucos se atreveriam a apostar que – sem estar a pesar doses de culpa ou a dissertar sobre retaliação corporativa pagando a arte o maior preço – a conclusão da contenda seria o fim da vida dos filhos. O cancelamento de “Luke Cage” e “Iron Fist” não chocou. Afinal, podia a Netflix estar apenas a entender que as séries não correspondiam à fasquia de qualidade pretendida; mas depois chegou o doloroso comunicado, idêntico àquele que tudo indica “Jessica Jones” e “The Punisher” terão a seu tempo – fim da linha para Daredevil, o filho pródigo. Fim da linha para Charlie Cox como Daredevil, para Vincent D’Onofrio como Wilson Fisk. Fim da linha para os planos-sequência e para o único produto (considerando cinema e televisão) que, embora somente a espaços, conseguiu aproximar-se do nível de elite estabelecido para o género por Nolan entre 2005 e 2012.
Feita a contextualização ou enquadramento do que terá estado na origem do fim, importa perceber o que é que fez da terceira temporada de “Daredevil” uma das 10 melhores séries de 2018, batendo qualquer uma das temporadas Marvel-Netflix até à data. E mais peso teriam alguns momentos se os soubéssemos na hora como um adeus e não como um até já.
Decorridos os acontecimentos de “The Defenders” (um sacrilégio para muitos fãs terem que ver oito episódios quase tão penosos quanto a 1ª temporada de “Iron Fist” para poderem estar a par da linha narrativa de Matt Murdock), “Daredevil” bebeu inspiração das vinhetas de Born Again, com o protagonista resgatado e reabilitado por freiras no orfanato onde crescera, ao mesmo tempo que o seu maior némesis, Wilson Fisk, negoceia a sua liberdade e amplifica o seu poder e influência em Hell’s Kitchen através da manipulação e corrupção, estando sistematicamente um passo à frente do herói.
Pessoalmente, e com o ciclo fechado é possível fazer um balanço, o apogeu de “Daredevil” foi a primeira metade da 2ª temporada, com Jon Bernthal a ser introduzido como Punisher. Mas curiosamente, no seu todo, a segunda terá sido a pior das 3 temporadas. Podem-se estabelecer várias semelhanças entre as temporadas 1 e 3: a maior delas todas, a preponderância de Wilson Fisk (ridículo D’Onofrio nunca ter sido premiado pela sua interpretação monstruosa da personagem!).
Querem um grande herói? Coloquem-lhe então pela frente um antagonista que o faça parecer impotente, cujo poder e a claustrofobia que provoca nos façam duvidar de quem vencerá. Querem um grande e eficaz antagonista? Tornem-no empático (o amor por Vanessa) e não o pintem como um vilão vazio, porque um bom antagonista sente-se o protagonista e herói na sua versão da história.
Ao longo de 13 episódios (problema recorrente das séries Marvel-Netflix a existência de floreados desnecessários para o sumo da história, que se contava bem no máximo em dez), “Daredevil” brilha através do xadrez político de Fisk, que todos toma como peões e reféns, e do conflito moral de Matt. O código do Demolidor ou Homem sem Medo, e a sua relação com Deus, foram sempre um dos aspetos mais ricos da banda desenhada e, por arrasto, da série.
Essa luta interna ou crise de fé, que acompanha o processo de recuperação de um quase-temerário Matt, é magnificamente colocada no ecrã com Kingpin a visitar os pensamentos do herói, e funcionando como sua consciência negativa, como um bloqueio que o impede de se reerguer.
Com Karen Page (episódio 10 totalmente entregue à sua backstory) e Foggy mais relevantes do que nunca, a série passa porventura tempo a mais com Nadeem, e assume-se como um bom prólogo para Bullseye, aqui agente Benjamin Poindexter.
No fundo, a terceira temporada de “Daredevil”, além de um inteligente regresso à temporada de estreia (que levante a mão quem também prefere Matt vestido de negro e com a metade superior do rosto coberto do que com o seu clássico fato vermelho), é o levar ao limite de todos os pontos fortes da série. Exemplo disso o facto da série nos dar em “Blindsided” o mais espectacular e exigente dos seus aclamados planos-sequência – depois da homenagem a “Oldboy” e de uma ambiciosa mas imperfeita luta ao longo de uma escadaria na última temporada, uma extenuante e intensa fuga da prisão, num shot contínuo ao longo de 11 minutos, com Cox alegadamente a fazer 80% do trabalho da sua personagem.
“Daredevil” 3 representa o reerguer de Matt Murdock, inicialmente dado como morto, descrente e perdido, encontrando a sua paz interior e a sua fé, numa jornada à distância enquanto Wilson Fisk troca o uniforme laranja da prisão pelo seu intocável e distinto fato branco, subjugando tudo e todos a seus impotentes prisioneiros, e manipulando Poindexter para servir de falso Daredevil.
A simplificação da temporada traz à memória a estrutura narrativa de um videojogo, com o frente-a-frente entre o herói e o seu maior opositor a ficar reservado como um confronto final. Porque é do triângulo Matt/Kingpin/Poindexter que se fazem a ação e os momentos mais emblemáticos da temporada, imortais num adeus dito por quem não sabia que tinha que nos acenar: a já referida fuga da prisão, armadilha preparada por Fisk, a primeira vez de Matt e Poindexter no Bulletin, com Matt a combater alguém com o seu fato vestido, e ainda o reencontro destes na igreja, sequência concluída num plano inspirado na Pietà de Miguel Ângelo, em tons de vermelho e negro, as cores com que a série sempre procurou tingir diversos momentos.
Finalmente, e perante este raciocínio, não é surpresa que o clímax da temporada em “A New Napkin” tenha em cena as três personagens. Com Vanessa a assistir a Kingpin a paralisar o futuro Bullseye, ao quadro branco respingado por sangue, e a um I beat you que ecoa como um dos mais arrepiantes e emotivos momentos do ano.
Quo vadis, Daredevil? A Disney não parece tentada a promover a continuidade da série no seu Disney+, mas seria um desperdício imperdoável não aproveitar o casting exímio de Charlie Cox como Matt Murdock (não tem o carisma de Downey Jr. ou Cumberbatch mas é porventura hoje o super-herói mais credível da Marvel), Vincent D’Onofrio como Wilson Fisk e, antecipando um pouco o futuro, Jon Bernthal como Frank Castle, o anti-herói perfeito.
Entre 2015 e 2018, “Daredevil” elevou a fasquia, construindo uma série negra e sangrenta, sabendo trabalhar a noção de fé, e criando obstáculos inesquecíveis e cravando no imaginário do público momentos e interpretações, coreografados ao ponto de nos fazer acreditar em tudo. Que seja um ponto e vírgula e não um ponto final. Está nas mãos da Disney abrir os olhos e recusar-se a ficar cega perante tanta qualidade demonstrada e potencial para mais.
TRAILER | “DAREDEVIL”
Já recuperaste do cancelamento de “Daredevil”? Qual a série cujo adeus em 2018 te marcou mais?
Daredevil - Temporada 3
Name: Daredevil
Description: Dado como morto, o descrente e perdido Matt Murdock reencontra a sua fé e o seu foco, numa jornada à distância enquanto Wilson Fisk troca o uniforme laranja da prisão pelo seu intocável e distinto fato branco, subjugando tudo e todos a impotentes peões do seu xadrez corrupto.
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Miguel Pontares - 85
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Maria João Sá - 75
CONCLUSÃO
O MELHOR – “Daredevil” 3 é um inteligente regresso às raízes da primeira temporada, com todos os pontos fortes levados ao limite. Charlie Cox e Vincent D’Onofrio (uma lição de como construir um poderoso e eficaz antagonista) estão incríveis, “Blindsided” oferece-nos um épico plano-sequência de 11 minutos e poucas linhas de diálogo em 2018 conseguem ombrear com um “I beat you” que ecoa imortal junto a uma tela imaculada salpicada em sangue.
O PIOR – Excesso de episódios (13) para o sumo narrativo, gastando a temporada tempo a mais com o agente Nadeem. Ainda assim, nada é pior do que o injusto cancelamento de uma das séries mais cotadas da Netflix e a melhor do género de super-heróis na atualidade.