Depois do Amor, em análise
Após vencer o BAFTA de Melhor Atriz Principal já em 2022, “Depois do Amor” de Aleem Khan faz a sua estreia em Portugal!
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Dois mundos, duas línguas e duas culturas separadas por um pedaço de mar, o Estreito de Dover. De um lado, Dover, a Inglaterra e o Reino Unido. Do outro, Calais e a República Francesa. Mas, para além da linha do horizonte, podem muito bem existir mil e uma histórias por contar, muito mais complexas do que as divisões provocadas pelos mapas políticos e administrativos, flagrantes ou momentos perenes de vida que pesam mais no plano individual do que no contexto colectivo dos povos e que fazem parte daquilo que podemos apelidar de manifestações pragmáticas da condição humana. E isso é um dado adquirido, quer o observador esteja situado no lado inglês a 110 metros de altura e quase nos limites naturais das chamadas White Cliffs of Dover, quer se encontre do lado francês junto das estruturas de betão e aço do porto de Calais.
No filme AFTER LOVE (DEPOIS DO AMOR), primeira longa-metragem do realizador anglo-paquistanês Aleem Khan, uma dessas muitas histórias começa precisamente em Dover, onde primeiro iremos conhecer Mary Hussein (interpretada de forma magistral por Joanna Scanlan), uma inglesa que se converteu ao Islão aquando do matrimónio com um cidadão nascido no Paquistão. Logo na primeira sequência iremos vê-lo fugazmente em casa numa conversa perfeitamente banal com a sua mulher. Mas o que não passa por mera exposição das rotinas diárias do casal será a surpresa da sua morte súbita e o impacto que ela irá provocar na vida futura da viúva. Este inesperado acontecimento, ao suceder no círculo íntimo do casal não irá, digamos assim, morrer no interior da célula familiar, repercutindo-se antes nas inquietações de Mary que, por mero acaso e depois do funeral, ao recolher e arrumar os documentos do marido, descobre a existência de uma outra mulher, aquela com quem o falecido partilhara uma relação seguramente ilegítima mas sentimentalmente gratificante, ao ponto de existir um filho, fruto desse amor que se mantivera secreto. Na verdade, Mary descobre a identidade da amante francesa do marido mas não se fica apenas pelo ruminar de uma raiva que, aliás, seria perfeitamente natural. Nem se resigna perante a dor provocada por aquela revelação. Nas preces do Islão e invocando a misericórdia de Alá, Mary vai encontrar a força moral para agir contra as sombras e dúvidas que invadem a sua memória e, apesar da angústia de um coração desfeito pela dor, arranja a coragem necessária para enfrentar a realidade nua e crua. Decide então atravessar não apenas a fronteira física e geográfica mas a distância emocional entre o seu antigo espaço de conforto e esse outro mundo oculto do outro lado do canal, essa outra realidade familiar que ela nunca suspeitara existir. Fá-lo para ir ao encontro da outra mulher, Geneviève (Nathalie Richard), para a enfrentar face a face na sua casa e em França. Não o faz logo, hesita, espera o melhor momento. Quando finalmente a encontra na soleira da porta, a francesa protagoniza uma situação caricata mas reveladora dos preconceitos sociais que podem atingir qualquer cidadão, por muito liberal que se diga. Como Mary está vestida como se vestem muitas emigrantes, com um véu sobre a cabeça e com um vestido de origem asiática, a francesa pensa que ela é uma mulher-a-dias enviada por uma agência para limpar e ajudar a despejar aquela casa antes de Geneviève e o filho se mudarem para uma outra maior e mais elegante de acordo com os parâmetros burgueses. Mary parece perplexa, fica sem palavras, mas por fim aproveita esta confusão para entrar sem mais explicações na casa da outra família do marido, onde irá dar conta dos sinais visíveis da sua vida dupla. Pouco a pouco irá preenchendo os silêncios que a atormentavam, enigmas que povoavam o seu pensamento e que vai decifrando ao encontrar, aqui e além, respostas ao jeito de confissões vindas dos ecos fantasmas de uma existência passada. Não se contenta porém com a superfície e procura ir mais longe na missão redentora que a levou ali. Mantendo sempre alguma frieza no comportamento, a partir de certa altura provoca ela mesmo a verbalização das respostas que queria ouvir na boca da francesa e do filho, inquirindo-os de forma subtil, como se procurasse as peças que lhe permitissem preencher um puzzle sentimental cujos espaços vazios a atormentavam na sua maneira de ser e estar. Só que desta vez ela vai sentir o sabor de estar por cima, a sensação de não ser a única vítima de um homem que escondera uma realidade concreta. De facto, até ao momento certo ela não vai revelar a sua condição de viúva, a sua identidade e a morte do marido, aquele que a família francesa pensa ainda estar vivo.
Para dar corpo e alma a uma personagem assim, o realizador encontrou uma actriz que não podia corresponder melhor ao que lhe era pedido. Um rosto pleno e luminoso, capaz de expressar sentimentos com um mínimo de palavras. Para além do mais, o argumento e o respectivo guião foram concebidos com base numa estrutura narrativa cujos diálogos são claros e incisivos, possuindo a informação necessária e suficiente para que o espectador acompanhe as circunvoluções das diferentes personagens sem perder o fio condutor do que vale ou não vale reter na memória. Não há lugar para a especulação ou grandes interpretações metafísicas, mesmo quando num ou outro momento vemos Mary em situações que pressupõem um comportamento mais íntimo ou de interpretação mais subjectiva, por exemplo, quando a vemos deitada na areia da praia, já dentro de água e a ser abalada pelo vigor das ondas que acabam por lhe cobrir o rosto e o corpo. Uma espécie de ritual de purificação, o equivalente material da oração ao fim da qual rebenta em lágrimas, as que estiveram contidas até cair sobre ela a violenta constatação da fragilidade da sua fé, não a islâmica, mas a que perdeu em relação ao homem que deveras amou. Esta magnífica actriz, sem medo sequer de expor o seu corpo que se apresenta fora dos cânones de beleza das sociedades moldadas por parolos e redutores conceitos de elegância, esta mulher que recebeu o BAFTA, precisamente para Melhor Actriz, dá pelo nome de Joanna Scanlan e, se o filme não nos desse mais para ver, só por ela e pela sua interpretação valia a pena ir ao cinema. Naturalmente que Nathalie Richard, no papel da amante francesa, dá boa conta de si e possui igualmente as qualidades exigidas para compor uma personagem bastante mais mundana e menos submetida aos valores normalizados das sociedades onde habitualmente impera a hipocrisia. Esta relativa liberdade de costumes leva até o seu filho (Talid Ariss) a criticá-la de forma bem agressiva, o que constitui uma suprema e agreste ironia, já que ele próprio tem uma vida sexual mais ou menos secreta com um amigo. E a reacção de Mary aos insultos que o rapaz dirige à mãe, mesmo que Geneviève não esteja em condições de a compreender e justificar, não podia fazer mais sentido.
Traição, luto e superação através da reconstituição gradual da sua identidade serão os factores que ajudam Mary a encontrar de novo o equilíbrio que, bem medidas as coisas, nunca perdera verdadeiramente. Não admira que os últimos planos de DEPOIS DO AMOR sejam a prefiguração de um potencial futuro em que uma provável plataforma comum de relacionamento se ergue como prova da resistência dos protagonistas face aos diferentes caminhos que o amor percorreu no seio das suas diferentes relações familiares, superando assim, e na perspectiva de continuidade das suas vidas, as consequências da mentira que um homem preferiu guardar para si e que o acompanhou para além da sua vida material.
Depois do Amor, em análise
Movie title: After Love
Date published: 23 de March de 2022
Director(s): Aleem Khan
Actor(s): Joanna Scanlan, Nathalie Richard, Talid Ariss
Genre: Drama, 2020, 90min
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João Garção Borges - 70
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José Vieira Mendes - 70
Conclusão:
PRÓS: Um guião que permite articular plenamente a componente imagética com a prestação dos actores de modo a consolidar a sua eficácia ficcional.
Mas a máxima valorização desta primeira longa-metragem de Aleem Khan, realizador anglo-paquistanês, vai para a prestação imaculada da britânica Joanna Scanlan.
CONTRA: Não contra o filme, mas contra a miopia e os meandros ziguezagueantes das nomeações para os Óscares que não consideraram Joanna Scanlan para as nomeações finais. Bem sei que há outras candidatas que merecem igualmente a sempre disputada nomeação, e se as felizes contempladas deste ano estão lá não foi por mero acaso. Também sei que, ano após ano, fica de fora muito boa gente com grandes prestações e que grandes nomes da sétima arte podiam e deviam estar a disputar o homenzinho dourado. Mas enfim, se os grandes problemas do mundo fossem esses, estávamos nós bem. Seja como for, o BAFTA de 2022 já lhe foi atribuído na categoria de Melhor Actriz. E não podia ser mais merecido, por ser um papel de grande intensidade dramática, uma oportunidade que agarrou com unhas e dentes para demonstrar as suas potencialidades na arte de representar, uma atitude assumida como um desafio na sequência de uma carreira já longa e onde se destacou nos últimos anos, sobretudo em personagens que desempenhou para séries e sitcoms produzidas para o pequeno ecrã. Entre outras, The Thick of It e Getting On.