Disclaimer, a Crítica | Cate Blanchett traz-nos mistério e tensão
O erotismo ou melhor o thriller erótico está de volta ao cinema e às séries como “Disclaimer”, realizada pelo mexicano Alfonso Cuarón, com Cate Blanchett como ‘a protagonista da protagonista’, estreada no último Festival de Veneza, e que chega agora ao streaming da Apple TV +.
A estreia no streaming de “Disclaimer”, a mini-série de sete episódios do realizador mexicano Alfonso Cuarón — três vezes Leão de Ouro em Veneza e duas vezes vencedor de um Óscar como realizador de “Roma” e “Gravidade” — protagonizada por Cate Blanchett e Kevin Kline, é um acontecimento raro, sobretudo pela sua enorme qualidade, pois não fica nada atrás de muitos filmes, estreados nas salas, quer em termos de realização quer do notável elenco. Trata-se de um thriller erótico vertiginoso que mostra bem que também não tardará muito que nos desloquemos às salas de cinema para ver séries de vários episódios, como vamos ver um filme. Até porque é sempre extraordinária a experiência da estreia de uma série, num grande ecrã e neste caso na Selecção Oficial (fora de competição), do Festival de Veneza 2024.
Uma extraordinária adaptação a televisão
Esta mini-série — aliás um formato que se está a tornar recorrente ao nível da produção para o streaming — é baseada em “Disclaimer”, o best-seller homónimo da escritora britânica Renee Knight, um livro publicado em Portugal, com o título “Pura Coincidência”, (Suma de Letras, 2015). A complexa história de suspense e mistério, é passada basicamente na Londres moderna e numa praia de Itália, alternando entre o passado nos anos 70 e a actualidade e conduz-nos numa trama cheia de incertezas e reviravoltas, que o realizador de uma forma notável, vai transformando em pistas ao longo dos sete capítulos, aliás bem definidos com a numeração romana, como nos livros. A história segue Catherine Ravenscroft (Blanchett), uma premiada jornalista de investigação e documentarista, que construiu a sua reputação, expondo casos, escândalos e transgressões dos outros, até que um dia recebe inesperadamente um romance intitulado “O Perfeito Desconhecido”, de um autor desconhecido. Ravenscroft fica horrorizada ao perceber que ela própria se tornou na protagonista desse romance que revela alguns segredos obscuros do seu passado. Enquanto Catherine tenta descobrir a verdadeira identidade do autor do livro, corre o risco de destruir a sua vida e a sua relação com o seu marido Robert (Sacha Baron Cohen) e o seu filho Nicholas (Kodi Smit-McPhee). O misterioso romance afinal foi escrito por Stephen (Kevin Kline), um estranho professor viúvo e solitário e Catherine, transforma-se na personagem-chave dessa história bem enterrada no passado, que tem um segredo que ela nunca partilhou, nem com os seus mais próximos.
VÊ TRAILER DE “DISCLAIMER”
Uma história de vingança através da ficção
A premissa de “Disclaimer” passa em primeiro lugar pela ideia que está subjacente a qualquer obra de ficção: um prévio aviso receptor de que qualquer semelhança com a realidade, quer seja na descrição das situações ou personagens, é pura coincidência. Esquecem-se as semelhanças e está em princípio garantida uma viagem por uma nova história ou por uma nova ficção, que nada tem a ver com a realidade. No entanto, imagine-se que o livro ou o filme que nos chega às mãos descreve estranhamente, algo que se passou na vossa vida? Ou seja, tem um protagonista que passou exatamente pelas mesmas experiências, pelas mesmas pessoas e sensações porque nós passamos? Outra ideia nova neste argumento incrível é o facto de existir alguém que se quer vingar, não da forma convencional, mas antes através de uma obra de ficção. Contudo a reviravolta na história (a suposta verdade), vai tornar-se num grande choque para o espectador, pois durante vários episódios, o realizador faz-nos acreditar numa tremenda mentira.
Dois narradores sempre presentes
A estrutura da narrativa de “Disclaimer” alterna entre dois narradores e apesar das diferenças de idade de ambos, este dispositivo funciona muito bem, pois permite conhecer ambos os lados da história. Os narradores são Catherine e tal septuagenário de seu nome Stephen. Ambos, representam duas famílias unidas por acontecimentos traumáticos, que vamos descobrindo aos poucos: Catherine tentou esquecer o que Stephen não quer deixar esquecido, mas antes revelar a todo custo a verdade, para vingar a sua mulher e o filho, ambos já falecidos. A sua sede de vingança cerca Catherine, ao ponto de esta ver a sua vida familiar e profissional desfeitas. As consequências desse(s) acontecimento(s) do passado, as reacções que as personagens têm, fazem com que a intensidade narrativa aumente em cada episódio ou pelo menos até ao V, quando as coisas começam a ficar mais claras e o ritmo alivia um pouco, mas não a surpresa, que vem com os dois últimos. Quando pensamos estar na posse de todos os elementos, surge algo que nos dá uma reviravolta na história, levando-nos a um ‘volte face’, sobretudo na nossa forma de encarar todos os personagens envolvidos na complexa trama. É curiosamente também uma história quase desprovida de violência física e à partida com uma componente erótica muito forte, principalmente na parte que é passada numa praia e num resort turístico italiano na década de 70.
Um thriller psicológico excitante
“Disclaimer” impressiona igualmente pelos seus mecanismos psicológicos e por dúvidas que suscitam alguns exercícios mentais e sobretudo muita atenção aos detalhes e aos diálogos — quem escreveu “O Perfeito Desconhecido”, não podia ter assistido aos acontecimento marcantes e por isso pergunta-se como teve acesso a eles? — que vão sendo esmiuçados ao longo da história. O segredo de Catherine, que inicialmente parecia tão linear, acaba por nos apanhar de surpresa. Quanto ao clímax, ficamos efetivamente abalados com a revelação final. “Disclaimer” é ainda construída em torno de poucas personagens, os tais dois núcleos familiares de Catherine e de Stephen, pelo que estas são caracterizadas com alguma profundidade embora nenhuma, se possa dizer que seja muito realista, são apenas tipologias de personagens. Porém, estamos no domínio da ficção e tudo serve para mexer com as nossas emoções. De qualquer modo, as personagens não deixam de ser bastante complexas, inclusive a falecida Nancy (Lesley Manville) — que está viva na mente de seu marido — que aparentemente parece ter guardado durante anos um segredo chocante e ter tentado revelá-lo com o romance “O Perfeito Desconhecido”. Acima de tudo, “Disclaimer” é uma história alicerçada numa boa adaptação e num excelente argumento.
Um elenco de estrelas de cinema
Cate Blanchett, ‘acabadinha’ de estrear “Borderlands”, de Eli Roth, é uma protagonista absoluta e cativante de “Disclaimer”. É curioso observar que a sua personagem tem qualquer coisa da elegância e da arrogância das personagens dos filmes “Tár”, de Todd Field ou de “Carol”, de Todd Haynes, algo que nos faz de imediato também antipatizar com a sua figura altiva e decerto modo superior. Kevin Kline é o misterioso ‘escritor’ que vira a vida de Catherine do avesso. Além deles e dos já referidos Sacha Baron Cohen (“Borat”) e Kodi Smit-McPhee (“O Poder do Cão”), surgem também Lesley Manville (“A Linha Fantasma”), Louis Partridge, Leila George — a jovem actriz que despedaçou o coração a Sean Penn, está linda de morrer —, Hoyeon e Indira Varma (como narradora). O vencedor de um Óscar, Emmanuel Lubezki, que já trabalhou com Cuarón em “Gravidade”, “Os Filhos do Homem” e “E a Tua Mãe Também”, é o principal diretor de fotografia, além do também nomeado para os Óscares, Bruno Delbonnel, que assina a fotografia de alguns episódios. O vencedor de um Óscar e de um Grammy, Finneas O’Connell (“Barbie”, “007 Sem Tempo para Morrer”) compôs a banda sonora.
JVM
Disclaimer, a Crítica
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José Vieira Mendes - 70
Conclusão:
“Disclaimer” é um thriller psicológico intenso, com personagens bem construídas psicologicamente, com várias tentativas (bem conseguidas, aliás!) de dirigir a atenção do espectador para desfechos da história plausíveis, mas enganadores. Estes são os principais elementos que fazem com que esta mini-série seja muito excitante e viciante.
Pros
Cate Blanchett e Kevin Kline arrasam com as suas interpretações. Sobretudo é de destacar o regresso em grande de Kline um dos actores mais ‘populares’ do cinema da década de 90.
Cons
O argumento é inteligente, porém suscita por vezes algumas dúvidas e incongruências: quem escreveu “O Perfeito Desconhecido”, não podia ter assistido aos acontecimentos marcantes e por isso pergunta-se como teve acesso a eles?