Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, em análise
“Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” marca o regresso de Sam Raimi ao cinema e ao genéro de superheróis, quase dez anos depois do seu último filme. Com Benedict Cumberbatch e Elizabeth Olsen a liderarem a introdução ao tão antecipado multiverso, serão a complexidade da premissa e o arco emocional de Wanda Maximoff bem balançados ou a MCU tem aqui o primeiro tropeção na sua Phase Four?
Uma das grandes dúvidas que pairava sobre este “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” remetia para como iriam Kevin Feige e companhia abordar o que se passou em “WandaVision”. Afinal de contas, a Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) que os espetadores viram pela última vez no cinema em “Vingadores: Endgame” não podia ser mais diferente daquela que é apresentada neste primeiro filme do MCU em 2022. Desde todas as ações inacreditáveis e moralmente questionáveis por parte da então heroína às mudanças drásticas nos seus poderes, até acaba por ser a falta de conexão emocional com as motivações da personagem que poderá prejudicar a visualização de espetadores que ignoraram a série.
A verdade é que “Multiverso da Loucura” assume a 100% que a vasta maioria do seu público tem acompanhado, de facto, todo o conteúdo televisivo do universo cinemático do estúdio mais popular da atualidade. O crescimento exponencial do MCU aumenta igualmente o perigo de alienar espetadores que não assistam tudo o que saia em todos os meios disponíveis, para além de começar a pedir que se conheçam também outras sagas de décadas passadas para desfrutar ao máximo de todas as suas obras. Se há dez anos atrás rever o MCU antes da próxima grande reunião de vários heróis era algo fazível e não muito complicado, agora torna-se um tarefa genuinamente cansativa e complexa.
Este prefácio serve, no fundo, para deixar bem claro o seguinte: se desejam sentir-se envolvidos na história de “Multiverso da Loucura”, especialmente no arco emocional do filme, necessitam de ver “WandaVision”. Não há volta a dar. Ler um resumo detalhado da série ajuda obviamente a entender a narrativa principal e as motivações de Wanda, mas a ligação com a personagem nunca será a mesma. Dito isto, a opinião livre de spoilers que se segue provém de alguém que tem acompanhado todo o conteúdo do MCU e que esperava que esta obra chegasse ao topo dos favoritos pessoais dentro do género. No entanto, mesmo saindo satisfeito do cinema, não deixa de existir alguma desilusão.
Comecemos pelos pontos positivos. O regresso de Sam Raimi à cadeira de realizador é o elemento mais refrescante de “Multiverso da Loucura”. O cineasta responsável pela trilogia original de Spider-Man e que se encontrava inativo desde 2013 impressiona com a sua capacidade de fugir à fórmula do MCU e entrega um filme visualmente distinto da restante franchise. Na altura do anúncio desta obra, Feige vendeu a mesma como o “primeiro filme de horror do MCU”, algo que deixou muitos incrivelmente céticos. Pessoalmente, nunca acreditei que qualquer realizador fosse capaz de se sobrepor às “normas” do estúdio, mas Raimi obriga-me a ceder e a admitir que estava errado.
Chega a ser genuinamente chocante a quantidade de sangue presente em “Multiverso da Loucura”, assim como as mortes bastante violentas e até macabras que deixarão o público mais jovem a pensar se entraram na sala de cinema correta. As influências clássicas de Raimi na forma como a câmara se movimenta pelo espaço e em direção às personagens criam uma atmosfera verdadeiramente aterrorizadora, onde perseguições tornam-se uma missão de sobrevivência e jumpscares eficazes mantêm os espetadores na ponta dos seus assentos. Estes elementos de horror são dos aspetos mais fortes do filme, mas poderão conter demasiado gore para alguns fãs.
As sequências de ação possuem efeitos visuais alucinantes, tal como o primeiro “Doutor Estranho”. Mais uma vez, a mão de Raimi cria cenas visualmente cativantes, com aquele estilo único do realizador a encher o ecrã. “Multiverso da Loucura” leva literalmente os espetadores numa viagem através do multiverso, forçando os cérebros a trabalhar horas extra para acompanhar a complexidade visual dos vários universos. Aproveito para deixar aqui uma opinião que poderá revelar-se pouco popular: infelizmente, a banda sonora de Danny Elfman é um dos componentes mais desapontantes. Para além de deixar praticamente de lado o tema original do protagonista, é difícil recordar uma sequência elevada pela música de fundo.
Aproveitando a menção do protagonista, eis que Doctor Strange (Benedict Cumberbatch) volta a tornar-se num dos meus personagens favoritos do MCU. Em “Homem-Aranha: Sem Volta a Casa”, o ex-Sorcerer Supreme demonstra ser tremendamente incompetente, irresponsável e incapaz de lidar com o que quer que lhe apareça pela frente. Uma presença quase caricatural daquele que é supostamente um dos heróis mais poderosos do universo. Em “Multiverso da Loucura”, Strange volta a demonstrar a sua inteligência, espírito de sacrifício e bondade sincera, distinguindo-se de forma irrepreensível de outras versões de si espalhadas pelo multiverso.
Os dilemas morais e emocionais presentes neste filme colocam Strange em posições complicadas que o obrigam a tomar decisões importantes para a estabilidade do multiverso e a sobrevivência de todos os seres e respetivas versões. No entanto, todo o sentimento de “Multiverso da Loucura” encontra-se no arco de Wanda. Os inúmeros traumas de alguém que perdeu o irmão, marido (várias vezes) e, mais recentemente, os próprios filhos levam Wanda por caminhos malignos, acabando por se “transformar” na grande vilã, Scarlet Witch. É aqui que a série ajuda a desenvolver esta personagem profundamente, adicionando-a ao debate de melhores vilões de todo o MCU.
As motivações de Wanda encontram-se rodeadas por um luto devastador e uma vontade imensa de voltar a reencontrar a sua família. Os múltiplos obstáculos que surgem para deter a sua missão são aniquilados com tal brutalidade e falta de misericórdia que qualquer espetador ficará boquiaberto com o poder invencível da bruxa. Todo o elenco entrega excelentes prestações, mas Cumberbatch e especialmente Olsen estão noutro patamar. O ator demonstra o seu talento versátil ao interpretar várias versões distintas da sua personagem, enquanto que a última prova que é das melhores atrizes de Hollywood no ativo – um Óscar nos próximos dez anos não seria surpreendente.
Mudando de tom, os problemas com o argumento de Michael Waldron começam precisamente no balanço entre as várias linhas narrativas. O arco associado à heroína-vilã é muito bem construído e explorado, terminando até de forma bastante satisfatória e completa. Apesar disso, fica por atingir o potencial máximo da personagem e da sua complexidade emocional devido às constantes paragens de Strange pelos diferentes universos enquanto tenta lidar com o poder descontrolado de America Chavez (Xochitl Gomez) – uma nova personagem com a habilidade de viajar pelo multiverso, mas que apenas o “solta” quando está com medo.
O balanço entre os arcos de Strange, Wanda e Chavez, para além da inclusão do multiverso no meio destas personagens, não é o melhor, de todo. Chavez sofre imenso, não passando de um MacGuffin gigante para chegar a outro MacGuffin mais pequeno através de um enredo geral bastante previsível. O argumento de Waldron demonstra alguma inexperiência em lidar com várias linhas narrativas complexas num espaço de duas horas, ao contrário do sucesso incrível da sua série “Loki”. Televisão e cinema não podiam ser monstros mais diferentes e sucesso num não implica sucesso no outro, tal como comprovam estas duas obras separadas.
A premissa de “Multiverso da Loucura” automaticamente coloca uma tarefa hercúlea para qualquer argumentista, mas a decisão de Feige em deixar tudo nas mãos de um único escritor sem experiência em cinema é, no mínimo, arriscada. Tendo em conta o tema emocional central do filme, até é de admirar que uma mulher não tenha recebido a possibilidade de ajudar no argumento. Dito isto, uma personagem incrivelmente interessante e com a importância de Wanda no universo cinemático merecia mais do que a sua última cena neste filme ser um plano largo CGI, longe da expressividade fantástica de Olsen, quando foi a própria que carregou a obra aos ombros.
Os cameos muito antecipados não são nada mais que isso mesmo: introduções a personagens novas e/ou variações de outras conhecidas, sendo que as últimas provavelmente foram mesmo só fogo de vista. Por um lado, aplaudo o facto de não se terem deixado encantar pelo sucesso de “Sem Volta a Casa” e enchido “Multiverso da Loucura” de cameos e fan-service infinitos. Por outro lado, existe literalmente apenas uma única sequência onde entregam tudo de uma só vez, sendo parcialmente desapontante e perigosa para o futuro. Aprecio a intenção de mostrar o poder impressionante de Wanda sem restrições, mas Raimi perde um bocado o controlo desta situação em concreto, não por dar valor em demasia a Wanda, mas por menosprezar outros heróis.
O CGI durante as sequências de ação encontra-se impecável tal como referido acima, mas a falta de filmagens em locais reais começa a ser preocupante. Por mais que a tecnologia e efeitos visuais evoluam, será sempre demasiado percetível que todos os atores se encontram dentro de um estúdio, rodeados por paredes azuis/verdes. Por vezes, nem no mesmo estúdio se encontram, tendo de olhar para pontos de referência, algo que sobressai imenso durante uma cena em particular com os tais cameos. Entende-se e até se apoia a necessidade de proteger o fator surpresa de qualquer filme, mas deve existir um balanço entre isso e a arte de filmmaking.
Por fim, algumas decisões narrativas questionáveis retiram o foco a linhas de enredo mais interessantes e mesmo o terceiro ato é bastante diferente daquilo com que o MCU costuma concluir. É deveras fantástico que se traga algo de novo, mas as mensagens negativas que a conclusão da obra passa são extremamente deprimentes e poderão causar uma influência errada em alguns espetadores. No entanto, existe muito que apreciar em “Multiverso da Loucura” e não tenho dúvidas de que será bem recebido pela maioria do público pelo mundo fora.
DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA | DISPONÍVEL NOS CINEMAS A PARTIR DE 4 DE MAIO
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, em análise
Movie title: Doutor Estranho no Multiverso da Loucura
Movie description: Em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, da Marvel Studios, o Universo Cinematográfico da Marvel desvenda o Multiverso e expande os seus limites para além do que alguma vez foi feito. Entre no desconhecido com o Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) que, com a ajuda de aliados místicos, antigos e novos, atravessa realidades alternativas e perigosas do Multiverso para enfrentar um novo adversário.
Date published: 4 de May de 2022
Country: EUA
Duration: 126'
Director(s): Sam Raimi
Actor(s): Benedict Cumberbatch, Elizabeth Olsen, Chiwetel Ejiofor, Benedict Wong, Xochitl Gomez, Michael Stuhlbarg, Rachel McAdams
Genre: Ação, Aventura, Fantasia
-
Manuel São Bento - 70
-
Marta Kong Nunes - 70
CONCLUSÃO
“Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” é das obras mais únicas do MCU graças ao estilo visual distinto de Sam Raimi e a sua capacidade impressionante em fugir à fórmula Marvel, aventurando-se seriamente nos elementos de horror. Nunca uma parcela do universo cinemático foi tão violenta, sangrenta e assustadora. Benedict Cumberbatch e especialmente Elizabeth Olsen carregam a história complexa sobre o multiverso através de um argumento de Michael Waldron com algumas fragilidades. O balanço entre as várias linhas narrativas podia ser melhor, America Chavez não passa de um MacGuffin para outro MacGuffin e a viagem pelos vários universos só compensa mesmo pelos efeitos visuais alucinantes. Alguma desilusão pessoal associada ao tratamento dos cameos e à falta de filmagens em locais reais. No geral, esperava-se mais daquele que deveria ser o “grande filme” da Phase Four, mas é uma entrada sólida na metade superior da franchise.
Pros
- Prestações soberbas de Benedict Cumberbatch e principalmente Elizabeth Olsen.
- Estilo visual único de Sam Raimi, incluindo os elementos chocantes de horror.
- Sequências de ação visualmente alucinantes e imaginativas.
- Arco emocional de Wanda Maximoff bem explorado e concluído de forma satisfatória.
- Doctor Strange volta a ser um protagonista convincente.
Cons
- Argumento de Michael Waldron demonstra inexperiência em cinema.
- Falta de melhor balanço entre as várias linhas narrativas e arcos de personagem.
- Banda sonora desapontante.
- Cameos surpreendentes mas tratamento dos mesmos chega a ser extremamente redutor.
- Raras cenas filmadas em locais reais, artificializando o filme em demasia.
- America Chavez não passa de um objeto para movimentar o enredo.
- Viagem pelo multiverso menos entusiasmante do que antecipado.