O ruído sublime de Efrim Menuck na ZDB
Com Efrim Menuck, a música tornou-se, na Galeria Zé dos Bois, uma nuvem densa, estática e inescapável de vibração física que ameaçou sublimar o pequeno espaço e a nós com ele.
Os espaços pequenos são uma maravilha. Enquanto conversava no estreito átrio, ao ar livre, que separa o bar da Galeria Zé dos Bois da sala de espectáculo, à espera que o concerto começasse, mesmo ao nosso lado conversavam, por sua vez, os músicos. Efrim Menuck acendia um cigarro e ia trocando algumas palavras com o companheiro de digressão, Kevin Doria, dos Growing e Hiss Tracks. Por várias vezes pensei ir lá cumprimentá-lo, desta vez pessoalmente, como combinara com ele ao telefone, no final da entrevista que lhe fiz há dias. Eram só três passos, mas não quis interromper a conversa, nem o luxo de uns minutos de descanso mesmo antes da actuação.
Na entrevista à MHD, Efrim Menuck disse-nos que grande parte do disco soava a um murmúrio consigo próprio. Já o concerto foi um imenso grito a nós e a quem estivesse para lá daquelas paredes que o lendário membro dos Godspeed You! Black Emperor, aqui a solo, ameaçava gaseificar. A voz, tão submersa na mistura que as palavras morriam indiscerníveis, cantava uma melopeia da qual restava só um gemido melódico e hipnótico. “I’m not speaking from a safe place”, assim começou Efrim Menuck, com o único pedaço de sentido verbal que apreendi. Mesmo à frente do palco, a olhá-lo de frente, cercada pelas colunas, as vibrações do baixo a pressionarem-me o esterno vindas do coração e dos pulmões, os tímpanos a ceder sob os agudos que cresciam até à estridência das ambulâncias, senti-me de facto em perigo.
Devo confessar que, a partir do primeiro tema (o termo canção não se adequa de todo às peças longas e amorfas que ouvimos), “LxOxVx/Shelter in Place”, não reconheci mais nada. Na realidade, confesso que nem sequer o primeiro tema reconheci, limitei-me a presumir que dele se tratasse, usando a letra (o fragmento que lhe surpreendi) como critério de identidade. O assalto sonoro nunca abrandou a não ser por dois ou três breves intervalos, o bloco de estática e distorção a oscilar, em lentas modulações insensíveis, deixando ouvir por vezes a batida do baixo, ao ritmo da qual Menuck ia batendo o pé enquanto cantava.
Olhando para trás, podia ver alguns espectadores mais absortos, de olhos fechados, a cabeça subindo e descendo, hipnoticamente, levada pelas ondas da maré vibratória. Olhando em frente, contemplava Efrim Menuck, enquanto a sua voz suplicava, repetitiva e inaudível, no interior desta nuvem sonora que, mais do que ouvida pela mente (ainda a tentar encontrar padrões nos sinais saturados que recebia), era sentida fisicamente pelo corpo. E perguntava-me por que razão procurava ele, procurávamos nós, procurava a modernidade este ruído nos limites da tolerância física.
Vieram-me à mente várias respostas, nenhuma delas original. A mimese da industrialização e a maior complexidade da onda sonora do ruído face à simplicidade das notas musicais (Luigi Russolo), a vertigem do sublime gerada por aquilo que nunca pode ser percepcionado na sua magna totalidade (Kant), a intensidade de um desporto radical. Todas são justas e pertinentes, costumo invocá-las. Mas nenhuma era capaz de explicar aquilo que via, que permanece um enigma. O enigma de quem tenta tornar as dimensões do divino empiricamente palpáveis.
Longe de ser uma reprodução ou até mesmo um arranjo diferente dos temas dos álbuns, o concerto era um lugar de experimentalismo e composição criativa, em que se aceita e acentua o caráter de momento único e irrepetível da música ao vivo. Mas, vencida pela fúria sonora, já perto do final (morri na praia!), fui recuando e saí para o exterior, seguindo dali o breve resto do concerto. De repente, de fora onde me encontrava, consegui ouvir distintamente a voz a soar quase solitária, a intensa vibração contida pelas paredes. E pensei que, numa sala bem maior, o tsunami de ruído poder-se-ia ter expandido, desdobrado, separadas e aclaradas as camadas da densa textura, ouvidas as subtilezas que ali jaziam comprimidas. Às vezes, os espaços pequenos são uma chatice.
Só às vezes. Porque acabado o espectáculo, Efrim Menuck, cá fora, sentado num degrau, de novo à conversa com Kevin, estava mesmo a três passos. À saída, dei-os, baixei-me e disse-lhe olá. A cara calejada abriu-se num sorriso discreto mas largo, cheio de tranquila cordialidade, e trocámos algumas palavras de circunstância, tão insuficientes quanto a intensa nebulosa de ruído para dizer o que quer que seja que andamos todos a tentar dizer.
Fotografias de Margarida Ribeiro
Efrim Menuck | Galeria Zé do Bois, 2 Julho 2018
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Maria Pacheco de Amorim - 75