"Estou Aqui" | © Terratreme

Estou Aqui, a Crítica | Zsófia Paczolay e Dorian Rivière recordam Lisboa em tempos de pandemia

Contra a indiferença e o esquecimento, “Estou Aqui” documenta como o maior centro desportivo de Lisboa se tornou num santuário para pessoas sem abrigo durante o píncaro da pandemia COVID-19.

Em tempos de colapso social, as pessoas mais fragilizadas e em necessidade são aquelas que mais sofrem, os problemas de cada dia multiplicados além do suportável. Sempre isto ocorre, uma certeza alarmante cujo horror já nem registamos, tão habituados estamos ao status quo. Assim aconteceu durante o confinamento, quando aqueles em situação de sem abrigo se viram ainda mais negligenciados do que é costume. Neste extremo, o maior centro desportivo de Lisboa, aquele do Casal Vistoso, virou centro de acolhimento com cerca de cem camas prontas a receber a população da capital sem outro sítio para se refugiar.

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“Estou Aqui” considera a comunidade temporária que se construiu naquele centro em plena pandemia, seguindo os afazeres dos diretores do projeto e seus trabalhadores, assim como as pessoas mais apoiadas por ele. Os realizadores Zsófia Paczolay e Dorian Rivière tudo começam com uma câmara móvel e curiosa, em documentação do lavoro necessário para manter tal sítio operacional, o trabalho e o movimento repetido, de cacifo para cacifo, de espaços privativos até à domesticidade partilhada e improvisada num campo de jogo. Há uma grande ênfase na relação entre as pessoas e o ecossistema social que habitam, uma harmonia entre o edifício e a gente que este resguarda, entre o cenário e a observação cinematográfica.

Um documentário de rara beleza fotográfica.

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Os trabalhadores são assim definidos pela imagem irrequieta. As pessoas acolhidas no centro tendem a ser retratadas em mecanismos mais fixos, pinturas vivas, granulosas, mais coloridas do que seria de esperar num projeto deste tipo. Filmado em 16mm por Rivière – além do crédito de realização, ele também foi diretor de fotografia – este é um documentário feito em gesto passivo e rara beleza. Não há nenhum truque técnico que chame a atenção para o brio estético da coisa, mas a qualidade da imagem é quase hipnótica. Além disso, é carregada de significado implícito, imbuindo “Estou Aqui” com propriedades quase líricas.

Vejam-se as texturas de superfície e de luz, a longa viagem do dia para a noite, capturada no mudar das cores que pintam as paredes exteriores do nascer do sol até ao crepúsculo. Esta é uma canção lisboeta, cantada a 24 fotogramas por segundo, dando voz àqueles que as ordens sociais mais tendem a esquecer. Oxalá o som fosse tão primoroso quanto a componente visual, mas não se pode ter tudo. Em certa medida, essa aspereza sónica transmite a sensação de autenticidade que se poderia perder se “Estou Aqui” fosse sempre tão bem composto como as suas mais belas imagens sugerem.


Não que a honestidade do exercício seja alguma vez posta em causa. Parte disso devém da pluralidade de tons em cena. Cineastas de menor sagacidade teriam reduzido “Estou Aqui” a um apelo à piedade e pena do espetador. Paczolay e Rivière não apelam, mas exigem empatia na sua forma radical e absoluta, confrontando a audiência com momentos caricatos em que desabrocha humor, algumas arestas vivas, discussões e o lado mais feio e conflituoso da vida em Casal Vistoso. As pessoas retratadas não são definidas pela sua situação socioeconómica nem reduzidas a números. Pelo contrário, são figuras multidimensionais que podem insurgir tanta amabilidade quanto frustração.

Pensemos nos rasgos de humor e camaradagem em comunhão com toda uma discórdia causada pela partilha da mesma televisão por gente com gostos muito diferentes. Uma conversa revela ciclos de reincidência, políticas fracassadas e vidas perdidas no vício. Outra interação leva à risada, gratidão colmatada pelo medo dos ratos que se calhar andam por aí. Noutro instante, a elegância do rito barbeiro transmite uma peculiar noção de paz, como um oásis de serenidade no meio de um mundo mergulhado em caos. Essa cerimónia da barba feita repete-se pela fita, um compasso rítmico que se sente como uma rima dentro do poema que o filme é.

Empatia incondicional em forma de filme.

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Em contraste, algumas passagens parecem um pouco panfletárias, caindo no sermão cujo motivo se entende sem, contudo, prefigurar bom cinema. Dito isso, não se quebra a autenticidade suprema, parcialmente porque as conversas fazem sentido do lado dos organizadores cujo trabalho está tão dependente da sensibilização das massas e a pressão imposta sob aqueles que podem mudar legislação. E também não se idealiza o voluntário em demasia. Numa sequência agonizante, quando a polícia entra no centro, temos noção de quanto poder os trabalhadores têm sob a gente em seus cuidados. Tudo se sente através no silêncio que de repente se impõe, no modo como o movimento miúdo destas vidas em crise some submisso e com medo.

E como sempre, não há julgamento. Todos merecem ser tratados como pessoas dignas de respeito e da curiosidade do espetador. Talvez por isso, os cineastas acabem por orientar a estrutura de “Estou Aqui” em torno de duas figuras específicas. Não há muito tempo para definir personagens da vida real em 79 minutos, mas Tiago e Plácido, mesmo assim, emergem como algo próximo de protagonistas. As suas meditações pessoais são reveladas gradualmente, levando à reflexão comovente sobre a luta contra a dependência de drogas, a saúde mental, as dificuldades em reconstruir uma vida depois de cair no suplício das ruas. A violência dessas experiências nunca aparece em cena, mas vemos as suas repercussões.

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Estou Aqui,” que foi premiado no DocLisboa e ainda passou em Guadalajara, não é necessariamente um filme sobre a pandemia. O COVID-19 deu oportunidade para observar estas dinâmicas sociais concentradas no mesmo sítio, mas tudo o que se testemunha é uma pequena parte de histórias maiores e projetos que ainda hoje se mantêm. Ou manter-se-iam se houvesse fundos para isso. O documentário termina com um regresso à normalidade, o centro desportivo já sem camas e os raios da alvorada a marcarem a presença de fantasmas no novo vazio. Sobre a imagem, um texto relata o fado de Tiago e Plácido – um vive independente, o outro morreu – e como a iniciativa do Casal Vistoso cessou por falta de investimento. É um murro no estômago no fim da fita, quiçá capaz de inspirar a revolta naqueles que o veem e mudar o mundo para melhor. Pelo menos, esse é o sonho.

Estou Aqui, a Crítica
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Movie title: Estou Aqui

Date published: 16 de April de 2025

Country: Portugal

Duration: 79 min.

Director(s): Zsófia Paczolay, Dorian Rivière

Genre: Documentário, 2024

  • Cláudio Alves - 80
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