Eu, Tonya, em análise
Em 1994, antes das Olimpíadas de Inverno de Lillehammer, a patinadora artística Nancy Kerrigan foi agredida por um estranho durante uma sessão de treino. A sua rival, Tonya Harding foi implicada no plano que levou à agressão e tornou-se na pessoa mais odiada dos EUA. Em “Eu, Tonya” o mito mediático de Harding é brutalmente desconstruído e dramatizado com muito humor, crueldade e alguns dos penteados mais horríveis já vistos no grande ecrã.
Expressar algo genuíno, capturar a verdade, cristalizar o real – tudo isso são objetivos putativamente desejados por inúmeros artistas, entre eles cineastas. No entanto, tais ambições parecem colidir e quase violar a própria arte, o que se torna especialmente flagrante quando entramos no panorama do naturalismo ou da declarada tentativa de reproduzir factos. Bem, sendo mais resumidos e abandonando alguns desnecessários floreados, queremos com isto dizer que filmes que se promovem a si mesmos como reveladores de algum tipo de verdade objetiva são, de modo quase invariável, alguns dos filmes mais artificiais que se possa imaginar. Não há nada mais artificial, afinal, que a pretensão do realismo e, no cinema, é raro o género mais codificado que o docudrama, nomeadamente o filme biográfico. Os criadores de “Eu, Tonya”, pelo menos, parecem estar bem cientes desta bizarra dicotomia e estão dispostos a subverter essa dinâmica com incomum bravura.
Baseado numa série de entrevistas feitas aos principais intervenientes da história, “Eu, Tonya” reconta a vida da patinadora artística Tonya Harding desde a sua infância até ao rescaldo do escândalo que lhe havia de definir a vida e torná-la na vilã preferida dos media norte-americanos. Ainda nos dias de hoje é impossível saber-se com absoluta certeza se Harding sabia ou não todos os pormenores do plano que levaram à agressão da sua colega patinadora Nancy Kerrigan antes das Olimpíadas de 1994 em Lillehammer. Com isso em consideração, o realizador Craig Gillespie e o argumentista Steven Rogers não suavizam em demasia as arestas da contradição, injetando ironia aos eventos em cena. Aqui não há verdade certa, a verdade é mesmo irrelevante, apenas as palavras acídicas de um grupo de idiotas, vítimas e abusadores que se tentam defender a sua própria pele e reputação já muito manchada.
Esta tapeçaria de contradições, mentiras e piadas de mau gosto nunca toma a forma de uma investigação sobre o que afinal aconteceu entre Nancy Kerrigan e Tonya Harding, e muito menos se afirma como um filme sobre os feitos desportivos da patinadora titular. Pelo contrário, “Eu, Tonya” evidencia-se como uma tóxica documentação de ciclos de abuso ao mesmo tempo que é um estudo de Tonya Harding, a mulher, a atleta e, talvez mais importante que tudo isso, o mito mediático. A forma desta criação é a colagem entrecortada de entrevistas recriadas, narração metatextual e a dramatização das primeiras décadas na vida de Harding, obtendo-se algo reminiscente dos ritmos de “Tudo Bons Rapazes”. Só que, não possuindo o brio formalista e precisão magistral da obra de Martin Scorsese, “Eu, Tonya” possui uma extra dose de humor e crueldade sardónica, uma alquimia tonal que tanto funciona para o benefício do filme como para sua inevitável desgraça.
Em alguns dos momentos mais inspirados de “Eu, Tonya”, as personagens viram-se para a câmara e falam diretamente para o espetador, reforçando a ideia de falsidade do que estamos a ver e questionando abertamente a veracidade e moralidade do próprio exercício do filme. De certo modo, o filme está a apontar o dedo a si mesmo e aos seus espetadores, todos cúmplices na demonização de Tonya Harding, aqui apresentada como uma atleta que se recusou a obedecer aos ditames de um desporto onde acima da perfeição técnica e atlética se põe uma imagem classista e sexista de feminilidade respeitável. Mais importante ainda, ela é retratada como uma mulher que sofreu toda a vida os abusos físicos e psicológicos da mãe e que, mais tarde, veio a sofrer o mesmo com o marido, ao mesmo tempo que a sua classe económica e gostos pouco sofisticados fizeram dela um alvo de chacota pública.
Ao contrário de documentários como “The Price of Gold”, “Eu, Tonya” faz pouco para realmente investigar a culpabilidade e partes mais negras da sua protagonista, mas o retrato que nos oferece de Tonya Harding não deixa por isso de ser fascinantemente humano. Nesse aspeto, Gillespie deve muito a Margot Robbie, que, apesar de ser demasiado velha para interpretar a adolescência da personagem, constrói aqui uma caracterização cuja complexidade parece transcender os limites do próprio filme. Por um lado, Robbie reconstrói a fisicalidade de Harding com a precisão mimética de um mestre, reforçando como, mesmo fora do gelo, esta era uma mulher desportista, mais muscular na sua postura que graciosa. Por outro, Robbie é uma perita em reproduzir as expressões faciais de Harding e de telegrafar um oceano de inseguranças e ressentimentos sem nada dizer. A cena em que ela tenta sorrir enquanto se prepara para competir nas suas últimas Olimpíadas é um exemplo vistoso disso mesmo, mas tão ou mais impressionante é o seu júbilo meio grosseiro quando completa um salto difícil ou o nojo na sua voz quando fala da reação de Kerrigan a ter ganho apenas prata em Lillehammer.
O resto do elenco varia grandemente em termos de qualidade. Como o ex-marido de Harding e uma das principais figuras no escândalo com Kerrigan, Sebastian Stan é um triunfo surpreendente. No seu trabalho, a dicotomia de um homem patético que também é capaz de ser um tirano abusador assim que encontra alguém vulnerável ganha nauseante realidade humana. Em papéis mais pequenos, Julianne Nicholson e Paul Walter Hauser caminham a corda bamba entre caricatura e lacerante plausibilidade humana, mas o mesmo não se pode dizer da atriz que provavelmente irá valer a “Eu, Tonya” o seu único Óscar. Como a monstruosa górgone LaVona, Alison Janney sucumbe à caricatura sugerida pelo guião e viola o seu precário equilíbrio tonal. As cenas de abuso entre mãe e filha são muitas vezes humorísticas, rejeitando em demasia o real horror do que estão a apresentar. Somente em momentos mais tardios, com Robbie, é que a atriz dá alguma tridimensionalidade à sua personagem, só que o mal já está feito e o abuso infantil já há muito foi trivializado pelo filme.
Desde a sua reprodução quase arqueológica dos estilos e modas mais abismais das últimas décadas do século XX, às suas escolhas musicais deliberadamente cliché, “Eu, Tonya” tem sido muito celebrado pela franqueza no seu retrato de uma América branca empobrecida que é normalmente apelidada de “white trash”. Gillespie, em geral, consegue apresentar o absurdo e feiura das personagens reais e seu mundo sem as demonizar injustamente, mas, como acontece com LaVona, esse equilíbrio nem sempre se manifesta. Por um lado, o apagamento de Kerrigan da história só serve para tornar mais plausível a tese de inocência de Harding sem dar tempo ao espetador para refletir no impacto que o escândalo e agressão tiveram na sua principal vítima. Por outro, o humor em demasia tende a menorizar o sofrimento cáustico da narrativa. Enfim, não se pode dizer que este seja um filme perfeito. É, no entanto, um filme arriscado, feio, cruel e ambicioso e isso, por vezes, é mais valioso que inócua perfeição.
Eu, Tonya, em análise
Movie title: I, Tonya
Date published: 24 de February de 2018
Director(s): Craig Gillespie
Actor(s): Margot Robbie, Sebastian Stan, Alison Janney, Julianne Nicholson, Paul Walter Hauser, Bobby Cannavale, Bojana Novakovic, Caitlin Carver, Maizie Smith, Mckenna Grace
Genre: Biografia, Comédia, Drama, 2017, 120 min
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Cláudio Alves - 75
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Rui Ribeiro - 90
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Catarina d'Oliveira - 75
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Daniel Rodrigues - 75
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José Vieira Mendes - 80
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Luís Telles do Amaral - 85
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Filipa Machado - 75
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Marta Kong Nunes - 69
CONCLUSÃO
Apesar de estar nomeado a três Óscares (Melhor Atriz, Melhor Atriz Secundária e Melhor Montagem), “Eu, Tonya” está longe de ser o tipo de docudrama de prestígio que normalmente se associa à Awards Season. Respeitabilidade seca é algo que este filme não tem, o que é fantástico, mesmo quando a sua ambição narrativa e tonal o leva a píncaros de podridão ideológica e ética. Um design sublimemente feio e as prestações insuperáveis de Margot Robbie e Sebastian Stan elevam o filme acima de um guião pejado de fragilidades.
O MELHOR: A prestação destemida de Margot Robbie.
O PIOR: Em termos mais narrativos, os rasgos de desumanidade no humor e estrutura do filme são detestáveis. Num contexto mais técnico, apesar das cenas de patinagem serem triunfos exuberantes de trabalho de câmara, os efeitos especiais que substituem a cara de uma patinadora profissional pela de Margot Robbie nem sempre são muito convincentes.
CA
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