Falcon Lake, a Crítica
Em ‘Falcon Lake’, da actriz e realizadora canadiana Charlotte Le Bon, dois adolescentes passam um verão juntos num estranho ambiente de fantasia e terror para demonstrarem ao mesmo tempo, e aos poucos, um terno relacionamento. Um filme fascinante, apesar de ser uma primeira-obra, que estreou na Quinzena dos Realizadores de Cannes 2022. Chega agora às salas a 17 de Agosto, um dos filmes-revelação desta temporada.
Há certos filmes que passam despercebidos e, que às vezes, não recebem a atenção que lhe é devida, tanto por parte dos espectadores, como até da crítica. É o caso deste ‘Falcon Lake’, a estreia da actriz canadiana Charlotte Le Bon (Montreal, 36 anos) como realizadora, e que esperemos que esta análise possa ajudar a que tal não aconteça, pois trata-se de um filme primoroso e de uma indubitável frescura, que merece ser visto. Estreado na Quinzena dos Realizadores (agora dos Cineastas) de Cannes 2022 — cada vez é mais difícil para quem acompanha o Festival conseguir ir a ‘todas’ — ‘Falcon Lake’ a estreia de Le Bon na realização — numa adaptação livre da novela gráfica ‘Uma Irmã’ de Bastien Vivès [ele é um dos autores das novas versões de Corto Maltese], Prémio de Melhor Álbum de Autor Estrangeiro no Amadora BD 2018 — é uma primeira-obra notável que combina dois géneros cinematográficos e que fica a meio-caminho entre um romance adolescente, com amadurecimento incluído, e o filme de fantasia, quase de terror.
INVERSÃO DOS GÉNEROS
Na verdade, os dois géneros cinematográficos, adolescentes e terror, costumam estar até associados em muitos filmes de sucesso. Mas em geral, é o suspense que prevalece, deixando para trás as relações entre as personagens; relações essas que tendem a aliás dissiparem-se logo que o elemento sobrenatural aparece. Em ‘Falcon Lake’, este dispositivo clássico, passa-se ao contrário, já que é a fantasia que começa logo por dar o tom ao filme; sobretudo na forma como Le Bon filma as primeiras cenas e algumas das histórias paralelas que vão sendo contadas para nos introduzir no ambiente; por fim, em algo que vai acontecer no próprio argumento. O filme quase poderia ser desvinculado desse elemento de fantasia, que até funcionaria na mesma, como um simples romance de adolescentes ou uma história de passagem e crescimento. Porém, também logo a textura dada pelo grão da película em 16 mm, o enquadramento fechado e opressivo, a música sinistra — da autoria de Shida Shahabi — e muitas das brincadeiras que acontecem entre as personagens — fez-me não sei porquê, lembrar um pouco ‘O Projecto Blair Witch’ (1999) — é o que o valoriza e o destaca de uma simples referência audiovisual entre os muitos do género de fantasia e dos conflitos ou amores da adolescência.
JOGO DE AMOR E TERROR
Em ‘Falcon Lake’, o terror subtil aparece logo como um expressivo jogo de sedução, como uma espécie de piscadela de olhos entre os protagonistas e mesmo entre a realizadora e os espectadores. E começa logo nos créditos iniciais marcados por um tom fantasmagórico com uma bela imagem de uma menina que parece morta emergindo de um lago escuro — parece a capa de um dos romances policiais escandinavos, de Camilla Läckberg — e que depois se move e sai nadando. Um inicio extraordinário que dá mote à beleza e técnica do director de fotografia Kristof Brandl. Le Bon começa, brincando com esses ‘clichés cinematográficos’ do género e vai continuar a fazê-lo ao longo do filme: os planos são longos como que esperando por alguma coisa que acaba por nunca acontecer. Ou então as personagens usam máscaras, fantasiam-se de fantasmas ou fingem-se de mortos. Existe aliás uma ‘lenda’ — ou um mito — que diz que um menino afogou-se naquele local. Não há provas do que aquilo que Chloé (Sara Montpetit) conta, uma adolescente de 16 anos, que vive numa casa e naquele obscuro cenário florestal do interior de Quebec, seja verdade? O outro grande protagonista é Bastien (Joseph Engel), um rapaz de 13 (‘quase 14’) anos que vai com a família visitar uns amigos dos pais que moram lá e de quem Chloé é filha. Bastien está também acompanhado de Titi, o seu irmão mais novo, de 6 anos. A casa na floresta é pequena e Bastien tem de dividir o quarto com o irmão e com Chloé, que tem apenas mais dois anos do que ele, mas que parece bem mais velha, pois já está no meio da sua adolescência; algo que Bastien também vai descobrindo aos poucos, em si próprio. É óbvio que o rapaz acaba por se apaixonar por Chloé; a miúda surpreendentemente, vai primeiro apenas simpatizar com Bastien e depois perceber que se pode divertir muito mais com esse rapaz peculiar, simpático e gentil, isto é bem mais do que com ela que é um tanto agressiva e ‘desenvolvida’ e que até já tem vários ‘pretendentes’.
VÊ TRAILER DE ‘FALCON LAKE’
FILME-REVELAÇÃO DO VERÃO
‘Falcon Lake’ conta a história dessa relação muito especial e desequilibrada entre os dois miúdos, um drama que se passa naquele território onde os adolescentes parecem ignorar tudo o resto à sua volta. Os pais raramente são vistos — há reuniões sociais, amigos convidados, etc. —, mas Bastien e Chloé fecham-se ao mundo exterior e vão-se tornando cada vez mais próximos, para a alegria do rapazito, que quase não acredita na sua sorte de conseguir ‘seduzir’ uma rapariga mais velha. Não porque, não se considere um ‘puto giro e fixe’ e que até alinha em todas as brincadeiras, mas porque geralmente as miúdas de 16 anos ignoram os ‘putos’ de 13 anos. A relação entre eles — e todos os outros adolescentes, que fazem as suas festas, bebem e fumam e levam Bastien a experimentar coisas novas, nem sempre com resultados muito animadores — começa aos poucos a ter um certo teor sexual, manejado na maioria das vezes pela realizadora com humor, incluindo mesmo com algumas excelentes piadas e diálogos — que conhecemos bem — sobre a sexualidade adolescente ( a nossa e a deles). Porém o que prevalece é o tom sombrio, de um filme de fantasmas, que atravessa tudo, de uma forma que às vezes parece excessiva, quase gratuita, bem distante do tom romântico, luminoso ou nostálgico que costumam ter essas histórias de amor adolescente. Se a isso somarmos uma notável compreensão das pulsões sexuais dos adolescentes — sejam eles de 16 ou quase 14 — , estamos diante de um filme com momentos extraordinários, que bem poderia ser considerado uma das revelações do ano e deste verão cinematográfico. Talvez muito mais do que outras estreias que por aí andam, nas salas de cinema ou no streaming.
JVM
Falcon Lake, a crítica
Movie title: Falcon Lake
Movie description: Bastien (Joseph Engel), um adolescente parisiense, passa as férias com sua família numa cabana à beira de um lago no Quebec, Canadá. Lá vai conhecer Chloé (Sara Montpetit), uma garota um pouco mais velha do que ele, que o fascinará. Apesar da diferença de idades e dos medos de Bastien, os dois adolescentes vão desenvolver um vínculo muito especial. Bastien terá que enfrentar seus medos para conquistar um lugar no coração de Chloé, enquanto ao mesmo tempo ambos exploram a sua sexualidade e a assombrada história do fantasma do lago.
Date published: 16 de August de 2023
Country: França, Canadá
Duration: 100 min
Director(s): Charlotte Le Bon
Actor(s): Joseph Engel, Sara Montpetit, Monia Chokri
Genre: Drama, Terror, Adolescentes, 2022,
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José Vieira Mendes - 90
CONCLUSÃO:
A estreia da actriz Charlotte Le Bon, como realizadora em ‘Falcon Lake’, um filme baseado numa premiada ‘graphic novel’ francesa, arrisca-se a navegar entre dois géneros cinematográficos (terror e adolescentes) e fá-lo com uma sabedoria própria de cineastas bem mais veteranos e experimentados. Le Bon vem da representação e o seu filme está longe do que por preconceito, supõe ser uma típica primeira-obra ou filme de actores que se tornam realizadores. Tudo aqui é cinema, do princípio ao fim, tem ideias no que se mostra e no que não se mostra, tem ideias na forma como os factos são apresentados e com escolhas formais puras de quem sabe o que tem na mão e de como usá-lo. Há efectivamente ideias sobre cinema em ‘Falcon Lake’ e há uma verdade emocional que justifica todas as opções estéticas tomadas. Não são muitas as primeiras-obras que lidam com esses dois grandes géneros da arte cinematográfica com tanta sabedoria e eficácia.
JVM
Pros
Os dois jovens actores e não são muitas as primeiras-obras que lidam com esses dois grandes grandes géneros da arte cinematográfica com tanta sabedoria e eficácia.
Cons
Não é uma obra-prima pois de facto trata-se de uma primeira-obra na qual não se encontram muitos defeitos ou feitios. Nada demais a assinalar.