Pormenor da capa de MAGDALENE (autoria de Matthew Stone)

FKA twigs, MAGDALENE | em análise

Do poder à solidão, da necessidade à súplica, MAGDALENE, de FKA twigs, oferece um retrato do humano e do feminino onde pulsam as tensões que definem o agora.

Muito se tem dito sobre a omnipresença da figura de Maria Madalena no segundo álbum de Tahliah Debrett Barnett. Aspecto facilmente exagerado, que tende a esquecer o quanto de MAGDALENE é a digestão dolorosa dos momentos difíceis atravessados por FKA twigs desde que, em 2014, editou o seu LP1, um dos álbuns mais marcantes da cultura musical desta década prestes a terminar. Nos cinco anos que entretanto passaram, duas relações infrutíferas mas mediáticas com os actores Robert Pattinson e Shia LaBeouf, meses de dores abdominais até à extracção de vários tumores no útero, a necessidade de trabalhar como bailarina num projecto de Spike Lee apenas quatro semanas depois da cirurgia, a solidão do desconhecido nas cidades americanas de Nova Iorque e Los Angeles onde parte do novo disco foi composto e gravado, tudo se acumulou para fazer destes anos um tempo de sofrimento e reflexão pessoal e de MAGDALENE o seu resultado (i-D). Ainda assim, FKA twigs confessou a sua obsessão pela figura desta santa dos primeiros tempos do cristianismo, desde a infância na St Edward’s School, uma escola privada católica de Cheltenham, reconhecendo o quanto lhe serviu de inspiração, fio condutor e fonte de imagens para a composição do álbum e da arte visual que o envolve.

Neste período conturbado da vida, a artista britânica encontrou consolo na personagem neo-testamentária que a tradição foi modelando e corrigindo historicamente. Segundo o comunicado de imprensa que acompanhou a partilha do single “Holy Terrain”, FKA twigs nunca pensou que “o desgosto pudesse ser tão avassalador”, tendo encontrado compaixão na altura de maior desaire, confusão e fractura: “Parei de me julgar a mim própria e, nesse momento, descobri a esperança em ‘Madalena’. Estar-lhe-ei sempre grata.” Para sermos precisos, o que serviu de lenitivo a Tahliah Barnett foi a sua interpretação particular desta figura bíblica. Para FKA twigs, a descrição de Maria Madalena como a pecadora que descobre o seu incomensurável valor ao ser olhada por Jesus, tão dependente deste homem divino para perceber e ser quem é, não passa de um arquétipo paternalista. Em MAGDALENE, a figura da santa metamorfoseia-se num outro arquétipo retirado da cultura romântica e decadentista do século XIX, em gestação desde a publicação do Paradise Lost, de John Milton. No álbum, é a cortesã, a mulher demoníaca, o anjo (ou alienígena) caído, mesclado ainda da pureza da história original, quem canta, suplica, oferece-se, enfurece-se, vinga-se, gaba-se, reflecte, chora e geme até ao final, quando perplexa, atónita e “overwhelmed” cai dos píncaros da sua tentativa, envolta em celofane.

A virgem e a meretriz, como Madalena, enquanto arquétipo, representa para mim ambas essas coisas. Como mulher, posso ser inocente, pura e fresca e, ao mesmo tempo, também perigosa, conhecedora, sedutora e poderosa, essas coisas podem acontecer simultaneamente. Na sociedade moderna de hoje em dia, as mulheres são muitas vezes postas na posição de ter de escolher uma delas, o que é uma pena. Somos as mulheres mais poderosas, podemos ser uma e outra coisa. (a Annie Mac, BBC Studios)

MAGDALENE | “CELLOPHANE”

MAGDALENE funda-se assim num revisionismo pós-moderno do passado e do seu legado de imagens culturais, na paródia que, de há quarenta anos para cá, vem reconfigurando o modo como nos vemos a nós próprios e às relações que estabelecemos uns com os outros. A dimensão do “poder”, aqui evocada, percorre todo o álbum, configurando uma certa imagem do feminino e uma dada concepção do amor. No tema de abertura, o tom de ameaça, presente tanto no aviso insistente de “If I walk out the door” quanto na vigilância dos mil olhos prontos a acordar, contrasta com os sentimentos de devoção e misericórdia habitualmente associados à música sacra medieval e renascentista, de que “thousand eyes” é uma engenhosa reconstrução art-pop, na sua melodia de canto gregoriano, na subtil polifonia a acenar ao de leve ao estilo de Allegri e Palestrina, na reverberação tão sugestiva do eco dos grandes mosteiros.

Longe contudo do “Kyrie” da Missae Papae Marcelli, de Palestrina, ou do Miserere, de Allegri, não é com o pedido de perdão que tudo começa e acaba em MAGDALENE, mas com um amor que, na raiz, esconde sempre uma luta de poder: “Now you hold me close so tender/ When you fall asleep I’ll kick you down/ By the way you fell I know you/ Now you’re on your knees”. Num amor assim não há gratuidade, toda a rendição e oferta de si é sob condição (“I die for you on my terms”) e mais cedo ou mais tarde exigimos do outro tudo aquilo que lhe demos: “Didn’t I do it for you?/ Why don’t I do it for you?/ Why won’t you do it for me/ When all I do is for you?” Mesmo aquela necessidade que seria uma dependência converte-se aqui numa forma de poder, com o carente a prender a si o potente por meio dos laços de responsabilidade e compromisso. Contrariamente à Fénix que renasce das cinzas, convertida em símbolo do que reconquista a vida dando-se até à morte, na matemática terrena de MAGDALENE tudo o que se dá ao outro esvazia o eu ao invés de o realizar, num espectáculo de predação: “How come the more you have, the more that people want from you?/ The more you burn away, the more the people earn from you/ The more you pull away, the more that they depend on you.” Numa entrevista à Genius, FKA twigs explicou que “Home With You” era sobre “aquela batalha de querer estar ali disponível para alguém, mas lutar também, ao mesmo tempo, por estar ali disponível para si próprio”. Esta “creature of desire” que é a Maria Madalena de FKA twigs “must put herself first”.

FKA TWIGS | “MARY MAGDALENE” AO VIVO

E, no entanto, sem simplificar, com aquela sensibilidade que, no universo da música pop, a faz contestar os papéis tradicionais atribuídos à mulher com uma elegância e contenção que falta a muitas outras, FKA twigs permite mais ou menos conscientemente que, por inúmeros poros, irrompam os limites, os contrastes e as aporias deste ponto de partida. Como em Citizen Kane, de Orson Welles, também aqui o poder convive e parece findar inevitavelmente na solidão. “Lonely is my hoping”, rumina Tahliah durante o seu “daybed” de depressão, inércia e pírrico prazer. Em última instância, é impossível escamotear a perda e a falta: “And for the lovers who found a mirrored heart/ They just remind me I’m without you”. E não estará a insegurança na origem da tentativa de se afirmar, não terá o poder a sua raiz no temor? “Will you still be there for me, once I’m yours to obtain?/ Once my fruits are for taking and you flow through my veins?/ Do you still think I’m beautiful, when my tears fall like rain?/ My love is so bountiful for a man who is true to me”. Ou no ressentimento, acontecido o que se temia? “Did you want me all?/ No, not for life/ Did you truly see me?/ No, not this time/ Were you ever sure?/ No, no, no, not with me”. E assim assoma, neste álbum sobre o empoderamento, toda a dúvida e incerteza sobre o outro, sempre livre de se ir embora, impossível de conquistar, terminando numa súplica com que se confessa a própria dependência: “When you’re gone, I have no one to tell/ And I just want to feel you’re there”.

Paradoxalmente, o modo de produção de MAGDALENE testemunha uma FKA twigs bem segura de si, da voz, da personalidade, do estilo. Menos preocupada em cinzelar uma musicalidade que a distinga de todos, são vários os caminhos que traça de encontro com o alheio. A sonoridade aparenta ser menos experimental e idiossincrática do que em LP1, distanciando-se das suas origens art-pop, trip hop e electrónica vanguardista em direcção a um R&B e até hip-hop mais palatáveis e convencionais. Mas esta aparente cedência resulta, na realidade, de um domínio da própria arte que permite abrir o espaço a outros, num projecto permeado de colaborações, sem perder nada do carisma ou coerência. O álbum soa tão coeso, transpirando tanto a presença de FKA twigs a cada instante, que se torna difícil imaginar a quantidade de produtores que participaram na gravação de MAGDALENE. Para além de Noah Goldstein, com quem FKA twigs partilhou os deveres da produção executiva, e Nicolas Jaar, deram também o seu contributo Koreless, Daniel Lopatin, Skrillex, Cashmere Cat, Benny Blanco e Michael Uzowuru, entre outros. Em “Holy Terrain”, FKA twigs reparte o terreno com Future, revelando aquele à vontade e paridade no embate que vêm só com a maturidade. O talento melódico, já perceptível em canções como “Two Weeks” ou “Closer”, floresce agora plenamente. As melodias pop/R&B mais expansivas e cantáveis, menos fragmentárias e artificiosas do que em LP1, permitem a FKA twigs soltar a voz, ao estilo de Kate Bush ou Tori Amos, e modelá-la teatralmente em função dos sentimentos da sua personagem, da sua ‘Madalena’, sem perder nada do bom gosto e enigma que sempre caracterizaram o seu trabalho. A esfinge de canto críptico de LP1, por detrás da qual se escondia a jovem tímida, desapareceu, revelando um rosto flexível de mulher, capaz de transparecer a miríade de sentimentos que assolam a alma e vibram em cada palavra.

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Interessa pouco discutir a legitimidade ou veracidade da reconstrução que FKA twigs faz da personagem de Maria Madalena. Não foi a primeira nem será a última pessoa a fazê-lo, sinal do perene fascínio que esta figura bíblica exerce sobre a humanidade. Interessa bem mais o confronto com o arquétipo que resulta desta metamorfose. É ao retrato do feminino proposto por FKA twigs em MAGDALENE que cabe ou não ser verdadeiro, profícuo, feliz. Uma simplificação, mas não simplista, a pintura é complexa, atravessada de tensões que a autora deixa viver, sem as procurar resolver ou eliminar, com a mesma angústia e quieta perplexidade com que as experiencia. Mas porque nos pouparia ela o trabalho que cabe a todos? “In this age of Satan/ I’m searching for a light to take me home and guide me out”. Nestes tempos de confusão, cada um deverá fazer a sua estrada. FKA twigs dá-nos um conselho: “Take a chance on all the things you can’t see/ Make a wish on all that lives within thee”. Sinto-me inclinada a concordar. Só daqui poderemos retirar uma história pessoal, irredutível a quaisquer arquétipos, sempre demasiado foscos, demasiado largos ou estreitos para espelhar o rosto único que nos pertence e abarcar a vida que nos espera.

FKA TWIGS | “SAD DAY”

FKA twigs, MAGDALENE | em análise

Track name: FKA twigs, MAGDALENE

  • Maria Pacheco de Amorim - 83
83

Um resumo

Com MAGDALENE, a britânica Tahliah Debrett Barnett atinge a maturidade artística. No seu segundo álbum, FKA twigs funde a sonoridade art-pop que a distingue, esculpida ao longo desta década, com o trabalho de múltiplos e fortes produtores, sem perder nada da sua identidade, antes levando-a a cumprimento. Menos gélido e fracturado que o seu antecessor, mais melódico e teatral, em MAGDALENE, FKA twigs exprime uma vida, retirada da própria vida, que acaba por transcender até mesmo aquele arquétipo em que poderia ter permanecido enclausurada.



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