Flow – À Deriva de Gints Zilbalodis faz História nos Óscares
Gints Zilbalodis fez História, conquistando duas nomeações para os Óscares – as primeiras para qualquer produção da Letónia. “Flow – À Deriva,” também conhecido como “Straume,” está nomeado para Melhor Filme de Animação e Melhor Filme Internacional.
Muitos cineastas dirão que há poucos animais mais difíceis de filmar que o gato. Realizadores como Garry Marshall e David Fincher já desesperaram com essas vedetas em miniatura, levando todo um plateau ao desespero na tentativa de filmar o felino a fazer o necessário para a cena. Afinal, não se treina um gato como se faz a um cão. Dito isso, estes animais aparecem diante das câmaras quase desde a sua génese. Quiçá o primeiro grande plano na História do cinema foi a um gato, o “Sick Kitten” de George Albert Smith. E depois há o Leo da MGM, a fera de quatro patas em “As Duas Feras,” as obsessões zoológicas de Chris Marker e tantos felinos animados pelo meio.
Digam o que disserem, o gato é um animal cinemático. Provavelmente o animal mais cinemático de todos. O realizador Gints Zilbalodis certamente verá razão nisso, considerando que vários projetos seus giram em volta de gatos. Só que, graças à animação, o cineasta letão não tem que lidar com os caprichos de atores felinos. “Aqua,” estreado em 2012, é uma curta-metragem sobre um desses bichinhos a lidar com o seu medo de água, preso num mundo em que os oceanos cobrem tudo. Desse feito nasceu a ideia para “Flow,” uma extensão do mesmo conceito à escala da longa. De uma observação singela sobre o comportamento animal, passamos a ter uma odisseia perante o apocalipse. E, desta vez, o Gato não está sozinho.
Um cinema pós-humanista e pré-verbal.
Estreado em Cannes, antes de uma passagem pelo Festival de Annecy onde ganhou quatro prémios, “Flow” começa num futuro incerto. Não há humanos no mundo aqui retratado, mas a sua presença é sentida nos marcos que deixaram para trás, edifícios e monumentos, como que a memória material de uma Humanidade perdida. Nesta ausência, os animais reinam, e um gatinho cinzento escuro vive uma existência solitária. Ele será o nosso protagonista sem nome e sem passado. Como poderia ter um nome num paradigma onde a linguagem sumiu? Só resta a comunicação pré-verbal, o instinto, a fisicalidade selvagem. Como poderia ter passado quando “Flow” se recusa a contextualizar a narrativa além da experiência presente?
Isso não é uma crítica negativa para com a obra de Zilbalodis, diga-se de passagem. Há grande valor nesta abordagem que insiste em considerar os animais como seres independentes de valores humanos, celebrando a sua especificidade natural ao invés de lhes impor antropomorfias comuns. É certo que existe uma mensagem moral na fita e um arco narrativo que, de certa forma, dilui alguma da radicalidade dos primeiros momentos. Mas, mesmo aí, Zilbalodis privilegia a animalidade do Gato e seus companheiros, um grupo inusitado que só se junta por necessidade, quando um dilúvio bíblico submerge a superfície da Terra.
Animosidades entre espécies são a norma neste domínio de presas e predadores, onde o Gato prefere estar sozinho, até quando um bando de cães se intromete nos seus dias. Essas mesmas fricções têm que ser superadas quando um pequeno barco à deriva aparece como salvação. Desse modo, a história de um gatinho sozinho no mundo torna-se na jornada dele na companhia de um lémure, um cão, uma capivara e um pássaro secretário. O laço que se desenvolve entre o Gato e essa ave é especialmente interessante, crescendo ao longo da fita até um clímax transcendental em que “Flow” alcança algo avassalador, como que o desabrochar da empatia no limiar entre a vida e a morte.
O mais impressionante é quanto Zilbalodis consegue transmitir sem subverter o realismo no desenho de personagem. Além de uns olhos enormes no Gato, praticamente todos os animais em cena seguem as mesmas linhas proporcionais da nossa realidade. Além disso, os seus movimentos seguem o preceito do naturalismo e os sons, com exceção da capivara, foram captados diretamente de criaturas reais. Sentimos a materialidade, a musculatura, o peso e o esforço de cada personagem de quatro patas, asas ou até barbatanas. Elas são milagres de animação onde o movimento de corpos exprime tudo sem o auxílio de feições legíveis.
Milagre de animação, fotografia, cinema!
Essa procura pelo real vai além das personagens, também se aplicando aos espaços por elas habitados e a câmara que observa a sua aventura. Todo feito em Blender, “Flow” tem alguma da coreografia de câmara mais prodigiosa do ano, construindo numerosas cenas em takes contínuos que exploram o espaço digital sem a intervenção de cortes, montagem mínima para promover a imersão do espetador. Na mesma vertente que a animação dos animais promove a materialidade, estes movimentos pelos ares, estas façanhas de câmara flutuante, sugerem algo mais etéreo, mais próximo do espírito e de um coração rendido ao sonho.
Tais elementos são importantes de referir porque “Flow” não é somente uma delícia cinematográfica para entreter aqueles entre nós que amam animais e que podia ficar horas a ver as tropelias de um gato. Trata-se também de cinema formalmente prodigioso, feito com poucos recursos – o que se denota nas texturas rudimentares, estranhamente simplificadas e meio alienantes dos animais – e cheio de ambição. Uma ambição que se manifesta principalmente no último ato, quando os limites da camaradagem são postos à prova e quando as personagens se confrontam com a perda. Na face do apocalipse, seu retrocesso e a possibilidade de um novo dia, “Flow – À Deriva” demonstra um enorme poder emocional a combinar com a sua inteligência. Não há sentimento barato, mas sim o reconhecimento de condições existenciais que nos unem a todos. As nomeações para os Óscares são bem merecidas.
“Flow – À Deriva” chega aos cinemas portugueses no dia 20 de fevereiro, com distribuição da Films4You.
Flow - À Deriva, a Crítica
Movie title: Straume
Date published: 28 de January de 2025
Duration: 85 min.
Director(s): Gints Zilbalodis
Genre: Animação , Aventura, 2024
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Cláudio Alves - 85
CONCLUSÃO:
- Animado no Blender com uma equipa mínima, “Flow – À Deriva” é um milagre de cinema independente com ambições desmesuradas e sucesso a condizer. O filme celebra valores humanistas ao mesmo tempo que propõe uma odisseia pós-humana, num mundo onde a nossa presença já só existe na memória material de arquiteturas abandonadas, casas vazias. Se amas animais, e gatos em particular, este triunfo de animação vai-te derreter o coração. Talvez até te puxe a lágrima.
CA
Pros
- O MELHOR: O momento do gato e do pássaro secretário no topo da montanha. É cinema transcendente e transcendental, um vislumbre do impossível contido em cada um de nós, um milagre que o cinema consegue transformar em realidade tangível.
Cons
- O PIOR: As texturas dos animais são inestéticas e tendem a dar ao filme a aparência de um videojogo de baixo orçamento. Apesar de ser algo técnico, trata-se daqueles aspetos que podem alienar o espetador e detrair da sua experiência emocional.