História de um Proprietário Rural, a Crítica | Uma obra inesquecível de Yasujirô Ozu
A Leopardo Filmes e a Medeia Filmes introduziram ao público nacional uma edição restaurada de “História de um Proprietário Rural” do cineasta Yasujirô Ozu.
Nos primeiros anos da vigiada democratização do Japão (após a capitulação em 1945, um dos mais relevantes actos do ponto de vista geopolítico e militar antes do fim da Segunda Guerra Mundial, seguida quase de imediato pela ocupação americana do vasto arquipélago), a indústria de cinema japonesa foi reestruturada de acordo com as imposições do chamado Comando Supremo das Forças Aliadas. Muitos dos profissionais que haviam sido afastados pelos fascistas e militaristas no poder regressaram aos estúdios que entretanto se reorganizavam para corresponder a uma nova conjuntura de produção. Uma parte dos que agora voltavam haviam sido acusados de subversão e foram libertados das prisões depois de cumprirem longas penas que em certos casos atravessaram os dias de brasa da guerra sino-japonesa e os múltiplos palcos da guerra no Pacífico.
OS ÓRFÃOS E OS ABANDONADOS ESTÃO ENTRE NÓS…!
Neste contexto, o percurso de Yasujirô Ozu, não sendo uma excepção, difere um pouco do percorrido por alguns dos seus colegas realizadores, já que a sua carreira cinematográfica fora interrompida por duas vezes, por questões de força maior e enquadradas pelo nacionalismo nipónico defendido pelo poder dominante, sendo a última mobilização como repórter militar, missão que cumpriu entre 1943 e 1945. Foi, aliás, nessa actividade que acabou capturado e preso pelas forças inglesas em Singapura, só regressando ao seu país em Fevereiro de 1946. Facto que explica o hiato existente na sua filmografia entre o sensível e belo, mas igualmente revelador de um certo sentimento nacionalista que prevalecia na época, “Chichi Ariki” (Havia Um Pai), 1942, e o muito interessante “Nagaya Shinshiroku” (História de Um Proprietário Rural), 1947, o filme que nos ocupa a presente análise, primeiro filme do cineasta produzido no pós-guerra.
Para já, saudemos o facto de a Leopardo Filmes e a Medeia Filmes nos proporcionarem a estreia em sala de uma obra que se manteve comercialmente inédita (mas não invisível) em Portugal até ao passado 30 de Novembro de 2023. Para mais integrada num importante ciclo de oito filmes intitulado Yasujirô Ozu – 120 Anos, onde se encontram algumas das suas obras-primas. Precisamente, estamos a comemorar neste final de 2023 os cento e vinte anos do nascimento do cineasta e os sessenta anos da sua morte e, por isso, não podia ser mais bem-vinda esta iniciativa que salienta, para além da mera curiosidade dos números redondos, uma obra ímpar na História Mundial do Cinema.
Mas vamos ao filme e ao que importa salientar nesta ficção onde o pulsar vital de uma sociedade se fazia sentir no esforço de mutação e adaptação a uma nova realidade que procurava ultrapassar um passado povoado de dramas e más memórias. Pelo menos para aqueles que nas classes mais desfavorecidas sofreram as consequências mais agrestes da aplicação da ideologia reaccionária e do espartilho de práticas autoritárias que empurraram o Japão para um beco civilizacional de grandes proporções, que obrigou os japoneses a não poucos sacrifícios.
Em “História de Um Proprietário Rural”, Yasujirô Ozu concentra a acção numa pequena comunidade de Tóquio, não propriamente na densidade urbana das principais artérias da capital que se encontrava ainda muito maltratada (consequência dos bombardeamentos americanos que a arrasaram e incendiaram), mas num espaço relativamente afastado do centro onde ainda prevalecia alguma natureza e a imponente presença das dunas que circundam a baía daquela cidade. Nesse local vivia uma série de homens e mulheres numa casa comum dividida em espaços contíguos onde, para além das rotinas diárias, exerciam modestas actividades comerciais, os negócios possíveis que não escondiam a escassez de bens e de matérias-primas, assim como as voltas que era preciso dar para sobreviver ao racionamento imposto e a um conjunto de limitações, administrativas ou outras, que incidiam negativamente sobre as suas opções individuais e o comportamento face ao colectivo. Não admira assim que, neste ambiente de relativa solidariedade entre vizinhos submetidos a um quadro de forçadas dificuldades, sobrevivesse igualmente um espírito egoísta e muito individualista sempre que surgia algo que pudesse significar alguma espécie de responsabilidade acrescida para com o outro e, pior do que isso, a mera hipótese de gastos financeiros que não fossem compatíveis com os apertos do momento.
Será pois neste contexto que um dos referidos habitantes chega a casa da viúva Otane (Choko Iida), mulher madura e de semblante carregado, propondo-lhe ficar com um miúdo que encontrara perdido, rapaz com uns seis ou sete anos de rosto indecifrável e que intencionalmente não articulava uma só palavra. Em abono da verdade, ninguém o queria aceitar ou receber na intimidade dos seus cantinhos onde não queriam ser incomodados. Entretanto, um grupo de vizinhos mais próximos lá consegue, por artes da vigarice e através de um jogo manhoso de papelinhos marcados com um X, fazer crer a Otane, que aparentava ser mais avó do que mãe, que lhe saíra a “rifa” e a consequente sina de ficar com o rapazinho, Kohei (interpretado com muita eficácia por Hohi Aoki). De início, as coisas não se compõem, mas a distância que Otane estabelece com o seu inesperado hóspede vai-se diluindo, sobretudo a partir do momento em que procura saber qual a sua real situação e descobre que, afinal, não era órfão. Pelo menos, havia algures um pai, já que recebera notícias de que ele estava vivo.
Deste modo, Otane partiu do princípio que o progenitor de Kohei o abandonara e logo concluiu que não seria flor que se cheire. Mais adiante confirmaremos se era assim ou não. Seja como for, na mesma medida que ia aceitando a presença do rapazinho, crescia em Otane a esperança de encontrar o desaparecido pai e entregar assim Kohei a quem o concebera, de modo a encerrar aquele inoportuno capítulo de uma vida já de si atribulada pelas privações do pós-guerra. Período onde de facto pululavam por Tóquio, e pelo resto do país, uma quantidade de crianças abandonadas a uma sorte incerta, órfãs ou simplesmente perdidas dos seus pais e das suas casas, provavelmente destruídas. Mas o destino faz das suas, e contra a corrente do que se passara ao início, o sentimento de afecto que se irá estabelecer entre a viúva e a criança aumenta quando Kohei foge de casa gerando nela uma sensação de ausência igualmente incómoda. Tudo acontece por causa de Kohei recear ser apanhado, mais uma vez, a urinar na cama, algo que anteriormente a velha senhora não encarara com a calma “materna” que a situação podia ou devia merecer.
Do ponto de vista da planificação, Yasujirô Ozu acentua o lado mais prosaico das relações humanas através de apontamentos realistas mas balizados por um argumento onde se destaca um subtil humor e por vezes uma crítica mordaz dos comportamentos humanos, que destaca quer em situações de algum dramatismo quer nas que correspondem ao que podíamos chamar de simples vicissitudes da vida real. Todavia, as sequências, enquadradas com rigor milimétrico, nunca iludem ou deixam de incidir sobre a dura e amarga realidade a que as personagens estavam sujeitas, nunca estas aparecendo como simples marionetas manipuladas com o objectivo de criar um certo número de acções e emoções num plano meramente imaginado ou exemplar. Não, antes pelo contrário, o realizador encontra sempre o modo justo de nos revelar as contradições da alma humana dos que vivem nas margens de um Japão que, ao invés de se fechar num casulo de egoísmo, se devia erguer solidário com os que mais sofreram.
“História de Um Proprietário Rural”, sem o ser por inteiro na sua essência ficcional, pode encarar-se como uma visão desencantada de uma realidade submetida a códigos ideológicos que perduravam e sobre a qual Yasujirô Ozu queria desenhar, com o apoio da engenharia cinematográfica e o seu inconfundível estilo, o panorama possível de um país cujas portas e janelas se deviam abrir para um futuro onde cada cidadão pudesse ser visto como peça de um novo puzzle político, social e cultural, herdeiro de uma civilização milenar que podia e devia ser continuada, consolidando o que os mais velhos podiam dar como contributo pessoal ao colectivo, mas dando especial atenção aos mais jovens que a sociedade devia proteger. Nas derradeiras imagens do filme damos conta da clara mensagem dos produtores, dirigida não necessariamente aos estrangeiros, mas aos cidadãos japoneses, a de que os órfãos da guerra deviam ser acolhidos para construir um futuro melhor, seguindo o exemplo do famoso samurai de quem se mostra a estátua, Takamori Saigo (1828-1877), nobre que liderou a chamada Restauração Meiji que conduziu o Japão a uma era de industrialização e aproximação a certos pressupostos de desenvolvimento inspirados no ocidente. Estátua erguida num largo do Parque de Ueno, distrito de Taito (Tóquio), que na época da reconstrução pós-guerra servia de ponto de encontro para os meninos abandonados e sem abrigo. Mais claro e japonês do que isto não se podia ser face a diversas censuras impostas pela potência ocupante, os Estados Unidos.
Repito, mais claro sobretudo para o público a quem primeiro se destinava este filme e a maioria das produções cinematográficas nipónicas, os homens e mulheres que eram convocados para alimentar o renascimento do Japão nas suas mais diversas frentes, o seu outrora e vigoroso mercado interno. E muito importante para o cineasta e cidadão Yasujirô Ozu, apelando a uma recuperação social dos jovens sem rumo que na sua opinião deviam ser acarinhados e protegidos para constituírem a futura vanguarda de emancipação do país. Sem esquecer o papel de velhos e novos na manutenção da noção antiga de família que a guerra havia em parte fragmentado.
História de um Proprietário Rural, a Crítica
Movie title: Nagaya shinshiroku
Director(s): Yasujirô Ozu
Actor(s): Choko Iida, Hohi Aoki, Eitaro Ozawa, Mitsuko Yoshikawa
Genre: Drama, 1947, 81min
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João Garção Borges - 100
Conclusão:
PRÓS: Primeiro filme de Yasujirô Ozu após o regresso do cativeiro em Singapura, onde fora preso pelos ingleses durante a Segunda Guerra Mundial. Nele reencontramos os sinais identificadores do seu estilo e a força das suas convicções filosóficas relativamente ao modo de ser japonês.
Imaculada cópia digital restaurada em 4K.
Magníficos actores, protagonistas e secundários, alguns dos quais regressavam ao convívio do mestre depois dos hiatos forçados pela mobilização militar do realizador.
CONTRA: Nada contra o filme! Todavia, qualquer um que o veja vai perguntar: porque carga d’água recebeu o dito em Portugal, e não só, a designação de “História de Um Proprietário Rural”? Não há um só proprietário rural nesta “história”, mas sim um conjunto de habitantes a viver numa zona devastada de Tóquio, que já na altura era uma cidade ampla, com áreas diversificadas, mas não propriamente rural. Enfim, não me vou pôr aqui a fazer pressão para que alterem o que já foi aprovado, mas permitam-me sugerir que esta obra bem podia ficar conhecida entre nós, por exemplo, pela designação “Crónica dos Abandonados” ou “Crónica de Vidas Periféricas”. E porquê? Porque Nagaya significa um espaço comum e de condição modesta, dividido em diversas parcelas habitáveis, mas com entradas separadas. Há quem lhe chame um cortiço. E Shinshiroku refere-se a um registo, uma espécie de quem é quem no interior dessas habitações e nas áreas circundantes. Tudo pessoas descartadas entre si e relegadas para um plano secundário, mergulhadas num salve-se quem puder motivado pelas dificuldades inerentes ao esforço de sobrevivência do pós-guerra. Enfim, fica aqui o desabafo, na certeza porém de que a visão do filme vale por si só e supera de longe o que possa estar certo ou errado na sua designação.