IndieLisboa ’22 | Silvestre Curtas 4
A quarta coleção de curtas na secção Silvestre do IndieLisboa passa da comédia para o desespero, do documentário mais frio para a animação mais tresloucada.
AT LEAST I’VE BEEN OUTSIDE de Jan Soldat
Um cineasta está perto da praia nudista. Na companhia da câmara, tenta encontrar alguém para filmar. Na busca de atores, vira-se para os apps de encontros sexuais. Contudo, por muito que tente, ninguém morde o isco. De facto, a maior parte dos homens abordados bloqueiam-no, ora num gesto de frustração sexual, precaução anti-COVID ou temor por ser revelado para com uma suposta família hétero. São assim as mágoas de ser ‘discreto.’ No fim, a desventura fílmica não serviu de nada e o realizador lá se contenta com o facto de que, pelo menos, desfrutou de alguns momentos fora de casa.
Ao longo de cinco minutos, Jan Soldat conta-nos esta história em jeito de farsa virtual, contrastando o texto projetado com a paisagem natural. Apesar de cómico, também há uma vertente melancólica no exercício. Está patente na desumanização do contacto, no modo como a conversa é feita em silêncio, somente com os alarmes e notificações do telemóvel. Além disso, a sombra da peste abate-se sobre o cenário bucólico, manifesta no vazio, na ausência de forma humana. Esta farsa sexual esvaziada de pessoas e de sexo é uma delícia agridoce, qual sobremesa ligeira para as audiências do IndieLisboa.
CHURCHILL, POLAR BEAR TOWN de Annabelle Amoros
Todos os anos, no Norte do Canadá, ursos polares fazem uma longa migração para se alimentarem de focas na Baía Hudson. Entre Outubro e Novembro, a travessia já se faz, mas a água ainda não gelou completamente. Na espera pela sua passagem congelada, os ursos fazem da área em volta de Churchill sua nova casa. Devido a este fenómeno anual, a cidade ganhou o cognome de “Polar Bear Town,” sendo para muitos uma atração turística. Fascinada por esta história desde a meninice, a realizadora Annabelle Amoros passou parte de 2019 em Churchill numa tentativa de compreender e retratar o peculiar ambiente.
Através de uma perspetiva que tanto se assume distante como dentro da comunidade, a cineasta captura Churchill como uma simbiose alienígena entre o mundo selvagem e o civilizado, a violência animal e as demandas do sistema económico. Muitas vezes a sua câmara incide o olhar sobre outras câmaras, definindo o espaço como um plateau gigantesco. A imprensa é invasão anual em sintonia com os ursos, mas é impossível separar Churchill dessas forças exteriores tal é a sua dependência do turismo gerado pelos seus vizinhos ursinos.
Talvez o tema mereça uma análise mais profunda que “Churchill, Polar Bear Town” lhe concede. Na sua forma e brevidade, o filme vinga pela criação de uma atmosfera ominosa. Em todo o caso, temos que louvar a fotografia de Amoros e Negin Khazaee, o som e a música.
PENALTY SHOT de Rok Biček
É um dia de verão na Jugoslávia e, sem saber, o país vive seu último suspiro de paz antes da guerra. É 1990 e, aproveitando o bom tempo, dois amigos decidem passar a tarde na brincadeira do futebol. Os feitos de Marafona e Ivkovic na final do Mundial atiçam-lhes o entusiasmo, mas o idílio de Matija e Franc não dura muito. Rapazes mais velhos intrometem-se na dinâmica dos dois e, sentindo a idolatria de Franc, decidem humilhar o rapaz. O que se segue é uma lenta tortura, à medida que Mario e seus compinchas convencem o miúdo a ser guarda-redes enquanto praticam penaltis.
Desejoso de se sentir incluído entre os mais velhos, Franc submete-se ao esquema, deixando Matija enquanto testemunha horrorizada. Rok Biček encena a escalada de violência com diabólica paciência, examinando a manipulação da mente e o purgatório do corpo franzino esmigalhado pelos chutos cada vez mais fortes. Baseado numa passagem do romance “Črna mati zemla” de Kristina Novak, “Penalty Shot” é um teatro de masculinidade performada e simbolismos históricos. No fim, a violência fica impune e o silêncio reina.
Gritos de verdade são sufocados com terra, abafados pela cabeça enfiada no chão. Só resta a fúria impotente, uma pocinha de sangue junta à baliza, um dente partido.
PUNCTURED SKY de Jon Rafman
Vagueando pelos confins do Youtube, é inevitável que nos cruzemos com algum vídeo sobre media perdido ou julgado perdido. Há quem faça carreira investigando memórias de infância, ora animações mal lembradas ou algum videojogo que aparentemente nunca existiu. Tais façanhas são exercícios em nostalgia, sinceridade e pseudojornalismo que olha para dentro, insular in extremis. “Punctured Sky” pode começar com uma premissa semelhante, mas o caminho seguido por Jon Rafman encara a situação como uma oportunidade de estudar o que é a realidade.
Num contexto contemporâneo em que tanta da nossa vida se passa no foro digital, num paradigma necessariamente irreal, como podemos definir algo como real? Assim se desenrola a curta-metragem enquanto máquina da desrealização, a começar pelo estilo visual da fita. Tudo é exposto em palimpsesto de colagens, um RPG como que feito de revistas cortadas em que nem a mais banal cara se assume enquanto fotografia crua. Ao invés disso, tanto o ser humano como o mundo em seu redor são quimeras disformes, homens com nariz de porco e hospitais infinitos.
É algo tenebroso, mas também muito cruel. Tanto assim é que os argumentos concetuais se perdem, ofuscados pelo esgar implícito, pelo nojo que o cineasta parece sentir pelos seus sujeitos. Ou talvez seja fascínio macabro, reformatado em jeito maldoso na esperança de tornar o engenho num filme.
Não percas o resto da nossa cobertura do IndieLisboa! Temos muitas críticas sobre os filmes exibidos nesta 19ª edição do festival.