IndieLisboa ’23 | Fumer fait tousser, em análise
“Fumer fait tousser,” também conhecido como “Smoking Causes Coughing” no mercado anglófono, é a nova loucura do cineasta francês Quentin Dupieux. Como sempre, o nonsense tudo domina nesta obra que teve a sua estreia mundial no Festival de Cannes do ano passado. Agora, chega à secção Boca do Inferno do IndieLisboa, já no seguimento de uma nomeação para o Prémio César de Melhores Efeitos Visuais.
Na conjetura atual, os cinemas estão a ficar saturados com filmes de super-heróis. Tanto assim é que, pela primeira vez em muitos anos, vários desses projetos têm-se visto em sarilhos quando chega a hora de recuperar o investimento. Será que os espetadores se fartaram? Ainda não nos atrevemos a responder na afirmativa, mas, pelo menos, temos esperança que a curiosidade sobre outros tipos de filme tenha aumentado. Abençoado seja o dia em que não for necessário apelar à banda-desenhada para conquistar o apoio da audiência. Ainda não chegámos lá, mas a possibilidade desse fado brilha no horizonte.
Talvez por isso, a mais recente brincadeira dadaísta de Quentin Dupieux nos pareça mais satírica do que é costume. Normalmente, este cineasta francês tende a deixar-se levar pelo absurdismo deliberadamente desnudado de fortes temas ou significados profundos. O gosto pela brincadeira é a única regra a ser seguida e o ridículo sem nexo é o resultado final de tais estratégias. “Fumer fait tousser” tem muito disso, mas evidencia um gosto satírico mais apurado, como se, entre o humor pateta, o realizador tivesse escondido uma lâmina. Engole o filme de uma vez à espera de um doce e acabas com a língua esfaqueada.
Certamente há sangue suficiente para fazer vingar a metáfora, inclusive algumas das maiores carnificinas na obra do cineasta. Em certa medida, é o inverso das aventuras de super-heróis que costumam abençoar o grande ecrã. Seriedade não existe, nem mesmo naquele estilo do melodrama fantasia. Contudo, a violência é gráfica até dizer chega, fazendo-nos retorcer o estômago perante o desequilíbrio de ideias trocadas. Assim é desde início, quando um miúdo em viagem com os pais se perde de amores enquanto espia uma batalha entre os seus heróis favoritos e o vilão do dia. Neste caso, é uma espécie de tartaruga gigante antropomorfizada.
Se as interpretações secas e inexpressivas dos atores ainda não nos tivessem indicado o tom do exercício, a batalha certamente o fará. Acontece que, longe de apelar à estética das grandes produções de Hollywood, Dupieux estiliza os seus super-heróis à la Power Rangers, com fatos a condizer e efeitos panhonhas. Ainda mais caricatos são os poderes dos guerreiros mascarados, cada um capaz de disparar um componente do cigarro com o punho cerrado. Benzène, Methanol, Nicotine, Mercure e Ammoniaque são as quintas partes destes Vingadores feitos palhaços, não fossem eles conhecidos como Tobacco Force.
Como bem sabemos, o tabaco mata, pelo que lá vai a pobre tartaruga explodir num geiser de sangue e vísceras. Não voltaremos a deparar-nos com o fã dos heróis ou sua família banhada em monstro explodido, sendo que o restante filme se dedica aos guerreiros em crise. Acontece que, seguindo as ordens do seu líder – uma ratazana falante cuja marioneta está sempre a babar-se – eles precisam de se reunificar enquanto equipa. Nada melhor que um retiro no campo, junto ao lago, onde os sujeitos podem relaxar, recuperar amizades e contar histórias, daquelas bizarrias que se partilham à luz da fogueira.
Em deadpan sincero, lá o elenco de Dupieux dá vida a estas peculiares dinâmicas de grupo, desencadeando cada cena nova com mais alguma loucura. Um episódio dá aso ao momento slasher, com um cameo de Adèle Exarchopoulos como uma final girl sem final feliz, tudo consequência de um capacete a emanar ideação homicida. Estará aqui um comentário acídico sobre a insanidade fomentada pelos confinamentos do COVID? Talvez, ou talvez seja só mais baboseira com receita aperfeiçoada e assinada por Dupieux. Ainda haverá tempo para outro conto, lá metido pelo meio da narrativa principal, antes que o apocalipse chegue.
Trata-se da mais tresloucada comédia de azares que se possa imaginar, uma forte dose de doideira vem da boca de uma barracuda falante, condenada à grelha. Este representa o mais genial uso de uma trituradora de madeira desde que os irmãos Coen lá enfiaram Steve Buscemi em “Fargo.” Só que, no caso gálico, a carne dilacerada não põe fim à vida, só reduz um pobrezinho a ser nada mais que um balde de carne liquefeita com uma boca a falar por cima. O espetador ri-se, mas o robot quase chora face ao complô, sugerindo a melancolia entrecortada nas piadas. Esse tom chega ao seu apogeu no final que não é final, como que em espelho da Exarchopoulos esquartejada.
Aí sim, Dupieux despoleta uma das mais surpreendentes transformações tonais do seu trabalho recente, desenterrando um pesar capaz de redefinir a comédia em cena e despertar humanidade em personagens demasiado apáticas para serem humanos. Sim, há parvoíce nas margens, desde o figurino aos senhores do fim do mundo com suas caras escamadas. No entanto, o que fica é o agridoce de uma família escolhida por sentimento e não por sangue, juntos perante uma conclusão que esmorece em preto antes de se concluir. Em Hollywood, isto não seria paródia e abriria portas a sequela milionária. Pelas terras gálicas, aparentemente, aceita-se a reticência como ponto final e nós aplaudimos a audácia. Oxalá todo a aventura de super-heróis fosse tão excêntrica, tão única, quanto “Fumer fait tousser”.
Fumer fait tousser, em análise
Movie title: Fumer fait tousser
Date published: 29 de April de 2023
Director(s): Quentin Dupieux
Actor(s): Gilles Lellouche, Vincent Lacoste, Anaïs Demoustier, Jean-Pascal Zadi, Oulaya Amamra, David Marsais, Alain Chabat, Marie Bunel, Grégoire Ludig, Adèle Exarchopoulos, Jérôme Niel, Doria Tillier
Genre: Comédia, Terror, Ficção-Científica, 2022, 80 min.
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO:
Uma piada às custas da febre de super-heróis do cinema mainstream, a nova comédia de Quentin Dupieux deixa-se levar pelo absurdismo que tanto caracteriza a obra do cineasta. Ver “Fumer fait tousser” é como começar a ver programas para miúdos até adormecer, acordando de repente perante um filme digno de bola vermelha ao cantinho. Contudo, por muito lúgubre que a cena possa ser, será sempre interpretada com uma veia trocista.
O MELHOR: A linguagem visual de Dupieux está sempre bem apurada, contrastando iluminação intensa a esconder profundidade, com efeitos meio artesanais. Amamos muito os fantoches, quer seja o rato ou a barracuda. Que delícia!
O PIOR: O cinema deste realizador não agrada a gregos e troianos. Muita gente odiará as ironias absurdistas do artista. Para tais audiências, “Fumer fait tousser” será insuportável. Mas enfim, a comédia é subjetiva.
CA