IndieLisboa ’21 | Her Socialist Smile, em análise
Em “Her Socialist Smile”, o realizador John Gianvito reconsidera o legado de Helen Keller, o modo como a História esqueceu os seus radicalismos políticos. O filme integra a competição Silvestre do IndieLisboa 2021.
Há quem diga que o cinema não deve ser lido. São assim que são formulados muitos dos argumentos contra legendas, ou, numa esfera do cinema mudo, contra intertítulos. De facto, o uso de texto no ecrã pode ser um mecanismo intrusivo que pouco ou nada acrescenta a uma fita senão mais ruído visual. Contudo, enquanto meio de comunicação, o texto demanda um tipo de participação ativa por parte do espetador que a mera imagem desprovida de palavreado não consegue atingir. É fácil a audiência cair no erro da passividade quando confrontada com discurso unicamente pictórico.
Contudo, assim que letras se iluminam na escuridão, o olho tende a ler, a registar a especificidade do que é dito, a escolha de palavras, a intenção do autor. Este paradoxo do cinema-texto é posto em evidência no mais recente filme de John Gianvito, um realizador americano que tem vindo a conceber obras políticas e ativistas durante as últimas décadas. Seu foco incide muito nos monumentos da ação política, os legados daqueles figurões que definiram o século XX e dedicaram a vida a lutar por um mundo melhor. É com semelhantes intuitos que o cineasta reconsidera a figura de Helen Keller em “Her Socialist Smile”.
Tentando ir além da imagem santificada da intelectual surda e muda, ele rejeita a história de infância que foi imortalizada com “O Milagre de Anne Sullivan”. Seu foco, em contraste, está na Keller adulta, no modo como a sua visão do mundo tombou para o socialismo e como essa faceta foi esquecida pelos livros de História. Não há maior tragédia no legado dessa senhora que o sistemático apagar do seu pensamento. Fala-se muito de Helen Keller enquanto sonho inspirador, mas raramente há quem interaja com seus valores e ideias.
Como acontece com muitas pessoas que padecem de enfermidade, a maladia dela consumiu a imagem pública, ofuscando quaisquer outras facetas. É fácil entender como isso aconteceu. Afinal, é mais fácil celebrar a menina que aprendeu a comunicar com um mundo que não consegue ver ou escutar – um milagre descomplicado – do que confrontar o radicalismo complexo da mulher política. “Her Socialist Smile” renega esse apagamento histórico e assim tenta devolver a voz a Helen Keller, explorando aquilo que ela pensava e não o que simbolizava.
É nesse paradigma que o texto se manifesta. As primeiras imagens da fita imediatamente trazem o assunto de comunicação à baila, apelando ao braile ilustrado na imagem projetada. Mais tarde, quando chegar altura de trazer as palavras de Keller ao ecrã, o espetador que estiver à espera de uma narradora em voz-off ficará surpreendido quando, ao invés, lhe é proposto o silêncio sepulcral. Gianvito contratou os serviços de Carolyn Forché, que narra partes da fita, mas a sua presença em “Her Socialist Smile” resume-se à contextualização histórica.
As palavras de Helen Keller a Helen Keller pertencem e, se queremos ver o filme, temos então de as ler, de as confrontar e assimilar, raciocinar até. Deste modo, o cinema propõe uma conversa entre sujeito documental e seu observador. Sem a barreira da interpretação oratória, as palavras parecem mais diretas, quase como se Keller escrevesse diretamente para quem vê o filme. Isso só se intensifica quando até as perguntas de repórteres são assim apresentadas. Usando o fundo de um teatro barroco, Gianvito encena as entrevistas como texto flutuante e não narrado.
Assim sendo, temos que ler nós mesmos a pergunta e a resposta, reforçando ainda mais a interação do espetador com a palavra. Não se trata da mesma dinâmica presente num livro ou jornal porque, no templo do cinema, estas escolhas vêm carregadas de expetativas subvertidas. Este texto é uma violação da ordem regular do mundo audiovisual e por isso salta à vista. Por isso, tem de ser considerado como algo fora do vulgar, uma escolha deliberada com efeitos próprios na mente da audiência e sua perceção do conteúdo fílmico.
Ultrapassando essas questões de forma e apresentação, “Her Socialist Smile” é um filme extremamente simples, centrando as ideias de Keller com tal intensidade que só isso existe durante os primeiros dois atos da película. É tudo retórica, mas também humor, pois rapidamente descobrimos quanto a socialista do título conseguia pontuar o discurso político com mordazes observações, notas de ironia. Por muito despido que o documentário pareça, Gianvito dá-nos uma ideia extremamente concreta de Keller enquanto animal político, enquanto pessoa que lutava por ideais socialistas, pelos direitos dos trabalhadores, face a uma sociedade que a queria ver somente como um milagre inspirador.
Não queremos dizer, com isto, que Gianvito jamais tenta deturpar a lógica da sua musa pós-morte. Keller não está cá para se defender ou para contextualizar suas crenças, o que leva o realizador a cometer um ato de estranha traição. Como que para apaziguar o espetador que pudesse rejeitar Keller como uma agitadora pró-soviética, a última parte de “Her Socialist Smile” tenta demarcar uma diferenciação entre o idealismo socialista e as vertentes tirânicas que se manifestaram como o pesadelo nascido do sonho revolucionário. Ao invés de continuar a centralizar exclusivamente as palavras de apelo à ação da ativista, Gianvito inclui uma palestra de Noam Chomsky. O excerto é exposto sem cortes, a única intrusão do género em todo o filme.
De repente, parece-nos que o realizador perde a coragem, tentando evitar o questionamento de Keller, querendo censurar quaisquer conflitos internos que os seus idealismos pudessem suscitar. A queda em didatismos fere a sensibilidade e não parece parte orgânica de “Her Socialist Smile”. Ainda para mais, as ponderações de Chomsky nem incidiam diretamente sobre Helen Keller. Este travo de generalismo em gesto de desculpa e evisceração ideológica não descarrila o filme, mas deixa um dúbio sabor na boca do espetador. Se é para ser uma celebração da voz política de Helen Keller, sem filtros ou deturpações, que assim seja do princípio ao fim do filme.
Her Socialist Smile, em análise
Movie title: Her Socialist Smile
Date published: 3 de September de 2021
Director(s): John Gianvito
Genre: Documentário, 2020, 93 min
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Cláudio Alves - 75
CONCLUSÃO:
Em modos de filme biográfico e tese cinematográfica, “Her Socialist Smile” pretende remodelar o modo como a História encara Helen Keller. Acima de tudo, é uma tentativa de contrariar ideias populares que roubaram à intelectual esquerdista seus valores políticos, reduzindo-a a um símbolo de inspiradora vitória sobre a adversidade. O uso de texto e minimalismo formal exigem a atenção do espetador, concebendo uma proposta viável de cinema que tem que ser lido e não por isso se torna menos cinemático.
O MELHOR: A recontextualização do ícone, o humor nas respostas de Helen Keller aos jornalistas, a altivez literária com que suas ideias são articuladas.
O PIOR: Essa estranha intrusão de Chomsky é mesmo irritante, um gesto variante que não faz sentido no contexto do filme. Apesar de ter pouco mais de hora e meia, “Her Socialist Smile” seria muito mais complexo se fosse mais curto ainda, se Gianvito tivesse evitado tal adição.
CA