"Índia" | © O Som e a Fúria

IndieLisboa ’23 | Índia, em análise

“Índia” é a primeira longa-metragem de Telmo Churro e saiu premiado do 20º IndieLisboa. No festival lisboeta, a obra integrou a montra Smart7 e a Competição Nacional, tendo ganho galardão escolhido pelo Júri das Universidades. Sua declaração, aquando da vitória, é muito extensa, mas fica aqui algum desse texto: “(…)o Cinema português está vivíssimo e mais do que se recomendar, impõe-se. E impõe-se com muita “pinta”. Como em todas as grandes decisões e indecisões da vida, deixámos que o nosso coração fosse o juiz final da balança que tem sido esta última bonita semana. Deixámos, então, que ele nos navegasse até ao “Índia” de Telmo Churro, que nos tomou de assalto na sua noite de estreia e conquistou um voto unânime.”

Pesquisando a história da sétima arte, deparamo-nos com a tradição antiga a que se refere a sinfonia da cidade. No seu estado puro, esse modelo cinematográfico enclausura-se na década de vinte, últimos anos do mudo e alvorada do sonoro, a perfeição de um tipo de cinema moribundo e o nascimento destrutivo doutro. São, essencialmente, renegações da narrativa em prol do olhar documentarista, mas também não se resumem à secura informativa a que alguns associam a não-ficção. Compondo melodia através da imagem urbana, estas canções silenciosas podem ser o cúmulo do experimental ou o maior minimalismo imaginário.

Acima de tudo, celebram o espaço diante da câmara, quer seja ao nível arquitetónico ou cinético, industrial, social, quiçá humano. Passada a fronteira desses Loucos Anos Vinte, a herança da sinfonia citadina perdurou e transformou-se. Nestes desenvolvimentos, manteve-se o lirismo patente no olhar que adora a metrópoles, sem deixar que regras desatualizadas fossem lei. Do documentário emergiu a possibilidade da ficção, um quadro narrativo para a sinfonia. Pensemos na “Manhattan” de Woody Allen, na Berlim em “As Asas do Desejo” de Wim Wenders.

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© O Som e a Fúria

Exemplos mais recentes completam o movimento cíclico de volta ao documentário abstrato, com a memória pessoal suplantando a hegemonia da montagem enquanto força maior do filme. Assim são alguns filmes de Terence Davies, de Mark Cousins, de Laura Gabbert e Gastón Solnicki. A plasticidade da ideia continua e há quem navegue os preceitos da sinfonia da cidade na direção do sonho. Outros, levam o conceito para patamares da comédia. Telmo Churro enquadra-se nessa variação humorística, sendo a sua estreia na longa-metragem uma espécie de canção em prol de Lisboa, filtrada por um olhar apurado para o absurdo e para a farsa de costumes.

Começamos no Rossio, mirando as escadas do metro em espera pela nossa representante no mundo da narrativa, nosso ponto de entrada. Ela é Karen, turista brasileira em visita à capital lusitana. Seu guia nesta desventura será Tiago, metódico historiador com trejeitos de declamação teatral. No que se refere à hospedagem, a turista será convidada na casa de Raúl, o pai idoso de Tiago, ocupando o quarto do senhor. A completar o trio geracional de homens portugueses está Manuel, filho de Tiago e neto de Raúl, o elo final desta santíssima Trindade que de santa nada tem.

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Acompanhando Karen na sua busca pela Lisboa bonita, cidade histórica e lugar espiritual, somos audiência para os devaneios do guia cujo plano não permite flexibilidades ou desvios. Para ele, este é um espaço definido pela revolução, contantes sobressaltos ao longo dos séculos que definem o espaço quebrado em nomes de gente importante e ações esquecidas, quiçá celebradas pela forma de monumento. Contudo, não se dignam as revoluções fascistas, sendo o guia esquerdista contra a recordação de tais eventos. Também o Teatro Nacional de São Carlos perde direito a palestra, pois há um guião a seguir. Para esta decisão, não se oferece razão.

De novo, impõe-se uma rigidez do homem cujas manias vão modelar os tons cómicos desta “Índia.” Interpretado por Pedro Inês, o João da Ega que Botelho filmou, Tiago é figura de fascínio e frustração, trespassando o naturalismo estético do exercício com a atuação estilizada sui generis. Jamais se fazem sacrifícios em prol do discurso realista quando a cadência declamada é opção, voz empopada acompanhado por gesto floreado. O divórcio é fantasma que o assombra, disfuncionalidades familiares e um puxar magnético para a tragédia. Ou é seu mesmo fado infeliz ou o fim de tantos outros na História lisboeta, almas perdidas que puseram fim à própria vida.

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O quotidiano desta gente é banal, mas faz-se berço do ridículo para Tiago e companhia limitada. Em contraste, a cidade que os une vai-se desenhando por traços paralelos que, a certa altura, se justapõem. É um não-espaço compreendido pelo episódio histórico, algo imaterial que nasce das muitas vidas em si vividas. É ainda a fisicalidade de uma cidade branca que a fotografia a 16mm de Mário Castanheira constrói pelo desfile de postais granulados. A imagem é belíssima, a História pesada e a gente caricata, três partes como essas três gerações de masculinidade tuga em ponto de crise. Sente-se a comédia a resvalar na tristeza que depois cai novamente no circo, outras três partes, três atos.

Falamos muito dos paradigmas deste exercício sem, contudo, achar propósito final para esta “Índia” que, em retrospetiva cinéfila, sabe a doçura lisboeta sem valor nutritivo. É anódino, mas talvez o seja por vontade própria ao invés do acidente, um labirinto deliberado cuja resolução é graça singela. No contexto da produção O Som e a Fúria a que Churro bem pertence, o filme aparece-nos num seguimento lógico do cinema dessa casa, traçando formalismos belos de mão dada à irreverência estrutural. Trata-se de cinema sobre nada e sobre tudo, capaz de fazer qualquer espetador cair de amores pelo cenário e, na melhor hipótese, estabelecer diálogos sorrateiros com que venha a “Índia” já apaixonado por Lisboa. Até na desafinação, esta sinfonia tem valor, agraciando os ouvidos de prazer mesmo quando propõe o desconforto, quando magoa.


Índia, em análise
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Movie title: Índia

Date published: 11 de May de 2023

Director(s): Telmo Churro

Actor(s): Pedro Inês, Denise Braga, José Manuel Mendes, João Carvalho, Lídia Franco, Maria João Pinho, Teresa Madruga, Maria Emília Correia, Américo Silva, Manuela Pedroso, Anaïs Weill

Genre: Drama, Comédia, 2022, 123 min.

  • Cláudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO:

A sinfonia canta a farsa na “Índia” de Telmo Churro. Esta estreia do realizador em longa-metragens expande ideias já presentes na curta “Rei Inútil,” seguindo a figura desse trágico Tiago até à meia-idade enquanto guia histórico. Pelo meio da banalidade de todos os dias, desenha-se uma Lisboa multifacetada, pintada em 16mm luminoso. O teto poderá ser o ponto fraco, ou pelo menos sua estrutura. Presa-se o humor e a revelia, mas a ditadura do guião ocasionalmente limita a experiência do filme.

O MELHOR: A fotografia de Mário Castanheira é um milagre, um poema, um hino ao esplendor da cidade branca.

O PIOR: “Índia” é demasiado longo e seu capítulo do meio aparece distendido além do que o conteúdo sustém. O início e o fim são suas melhores passagens, sendo que, pelo meio, fica-se a pedir montagem mais judiciosa ou talvez uma maior abstração.

CA

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