DocLisboa ’16 | Junun, em análise
Longe dos seus usuais épicos americanos, Paul Thomas Andersona cria em Junun, um documentário musical de grande modéstia e deliciosa simnplicidade.
Apesar do cinema documentário já existir desde o nascimento do meio em si, mesmo que apenas nos anos 20 se tenha começado a pensar realmente num género documental, é raro ver um filme deste tipo a alcançar grandes audiências. Daí também se justifica a existência de festivais como o DocLisboa onde este cinema, quase de nicho, consegue receber o tipo de celebração que realmente merece.
No entanto, também convém refletir sobre o facto de que, na última década e meia, o cinema documental ter vindo a ganhar crescente popularidade e, mesmo que ainda não tenha conquistado o mainstream, é justo dizer que o circuito de festivais e mais virado para os méritos artísticos do cinema se tem vindo a mostrar progressivamente aberto ao cinema documental. Um dos subgéneros que mais tem sido responsável por esta ascensão de estatuto na mente popular é o documentário musical, que está representado no DocLisboa por vários títulos, incluindo um dos mais estranhos exemplos recentes deste mesmo género de propostas fílmicas.
Falamos de Junun, o mais recente filme de Paul Thomas Anderson e o seu primeiro documentário. Mais especificamente, este é o filme que Jonny Greenwood convenceu o realizador a fazer, depois da sua terceira colaboração em Inherent Vice. O guitarrista dos Radiohead levou Anderson consigo numa viagem até Jodphpur na região do Rajastão da Índia, onde o músico esteve a trabalhar numa experiência conjunta com Shye Ben Tzur e os The Rajasthan Express. Tzur é um músico israelita e especialista em Qawwali, uma forma musical ligada ao misticismo e devoção Sufista, e o segundo grupo é de origem indiana é composto por dúzias de músicos que trabalham inclusive com instrumentos tradicionais do seu país. Este trio improvável juntou-se, em 2015, no opulento forte de Mehrangarh para gravarem um álbum e é esse processo colaborativo que é registado pela câmara do cineasta norte-americano.
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Depois da descrição dos criativos envolvidos assim como o próprio nome de Anderson, cuja filmografia é rica em obras de duração épica e grande fausto formalista, seria fácil imaginar Junun como um filme de dimensões grandiosas, mas a verdade está bastante longe de tais conjeturas. De facto, esta é uma obra caracterizada, acima de tudo o mais, por uma avassaladora simplicidade e humildade. Poder-se-ia mesmo dizer que Anderson mostra com orgulho a pequenez do seu trabalho, que originalmente até foi concebido como um filme exclusivo para a plataforma online MUBI.
Contrariando o fausto do cenário, a grandeza das personalidades, a complexidade da música e a densidade da mistura de culturas e heranças religiosas, Anderson cria em Junun um filme de abjeta simplicidade. Ao longo de menos de uma hora, ele acompanha o trabalho destes artistas, as anódinas inconveniências de cortes de eletricidade ou instrumentos desafinados e deixa-se embriagar pela espetacularidade sinfónica que o rodeia.
O seu principal foco de atenção são as jam sessions que guiam o trabalho dos músicos e, no final, todo o filme acaba por se mover com os ritmos erráticos e rasgos de inspiração e improvisação de uma jam session, mostrando-se como o mais airoso e leve trabalho em todo o currículo de Anderson. No mais espetacular momento de Junun, a câmara guiada pela mão do realizador e outros três cameramen encontra um homem a dar de comer a um bando de pássaros num telhado que olha a cidade de Jodhpur, enquanto Greenwood, no seu mais ativo momento do filme, está a criar, em conjunto com Tzur, uma mistura engenhosa de música eletrónica e Qawwali. A glória sonora quase que é ignorada em prol de um píncaro de êxtase visual em que a imagem voa juntamente com os pássaros, através do uso de um drone.
Tais mostras de jovial e impolida experimentação, e até alguma falta de foco e linearidade criativa na assemblage das filmagens, fazem com que todo o filme fervilhe de energia e liberdade ao mesmo tempo que pinta toda a situação com uma sensibilidade profundamente relaxada e casual. Longe da precisão fotográfica dos seus outros projetos, o realizador chega mesmo a ajustar o foco durante o decorrer da ação e a reenquadrar a imagem com a câmara a gravar, e a montagem apenas sublinha esta inspirada falta de rumo e estrutura convencionais, tornando toda a experiência em algo oblíquo e magro em exposição ou mesmo qualquer tipo de contextualização desnecessária à apreciação sensorial da música.
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Aliás, é fácil acusar de Junun de fugir deliberadamente aos mais feios e complicados aspetos do esforço colaborativo em evidência aqui. Muitas vezes o diálogo não é legendado e nas raras ocasiões em que isso acontece, temos Tzur a assegurar o espetador da jovial multiculturalidade da sua pessoa, da música e de todo o projeto e a menção de que muitos dos cantores de Qawwali, tal como Greenwood, não sabem o significado das palavras que cantam. Nessas instâncias parece que se tenta apagar qualquer possível sombreado de apropriação cultural reminiscente de tantas outras colaborações entre artistas ocidentais e os seus colegas de nações em desenvolvimento e precariedade económica. Felizmente, a modéstia que rege a generalidade do projeto impõe-se a tais fragilidades, e, para quem aprecie o tipo de música que é aqui produzida e celebrada, Junun será uma inquestionável joia de simples prazer cinematográfico.
O MELHOR: Os momentos em que a câmara se liberta dos luxuosos interiores do forte e se deixa voar pelos céus, deslizar pelos mercados locais e enveredar pela noite urbana ao mesmo tempo que a banda-sonora se mantém fixada nas gravações do álbum que partilha nome com o filme, que significa amor e paixão com toques de loucura e obsessão.
O PIOR: Para quem não apreciar as fusões musicais praticadas pelos artistas que protagonizam Junun, esta obra, por muito curta que seja, ir-se-á revelar como uma entediante tortura.
Título Original: Junun
Realizador: Paul Thomas Anderson
DocLisboa | Documentário, Música | 2015 | 54 min
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