LEFFEST ’22 | Nostalgia, em análise
Mario Martone regressa a Nápoles em “Nostalgia,” filme com estreia mundial em Cannes, onde integrou a Competição Oficial. Apesar de não ter ganho nenhum prémio na Croisette, a fita tem tido grande sucesso em Itália, sagrando-se como um dos grandes campeões escolhidos pelo Sindicato de Jornalistas de Cinema. Além disso, Pierfrancesco Favino também já conquistou indicação para o troféu de Melhor Ator nos European Film Awards. Em terras portuguesas, no 16º Lisbon & Sintra Film Festival, “Nostalgia” também esteve na secção competitiva, mas o júri presidido por Olivier Assayas não o selecionou para nenhuma honra.
Na sua mais recente longa-metragem, o cineasta italiano Mario Martone abre a cena com um apelo às palavras de outro grande nome do seu cinema nacional. A citação é de Pier Paolo Pasolini e assim diz que “O conhecimento está na nostalgia. Aquele que não está perdido, não o tem.” Tais ideias ecoam por todo o filme, uma ruminação no regresso a casa depois de décadas ausente. Trata-se de um estudo de personagem e sinfonia da cidade em simultaneidade sinfónica, seguindo a linha nostálgica para definir e assim conhecer a humanidade do protagonista e a humanidade de uma Nápoles perdida na memória de quem nela cresceu.
Se Martone regressa às origens napolitanas, também o faz seu herói de nome felizardo. Ele é Felice Lasco e, quando era um mero adolescente, algo aconteceu que o levou a abandonar a terra natal e sua amada mãe. Partiu rumo ao Líbano para trabalhar com o tio e lhe pedir guarida também. Lá ele ficou pelo Médio Oriente, acabando por fazer vida nesses lados, com esposa dedicada e toda uma existência divorciada das origens Napolitanas. Quarenta anos depois da fuga, contudo, algo o leva de volta à terra que há tanto tempo abandonou por razões incertas cujo mistério forma o cerne do filme na sua segunda metade.
Primeiro, contudo, há uma cidade a explorar e pecados a expiar. Interpretado por Pierfrancesco Favino, um dos grandes atores Italianos do momento, Felice deambula por ruas suas conhecidas como um espectro melancólico. Os olhos são cansados, mas também se inflamam de emoção quando miram gente amada ou lugar mal lembrado. Se o pesar da disposição solene extravasada por epítetos de amor não desse a ideia de um filho regressado a casa ao fim de toda uma vida lá fora, então a voz certamente o denunciaria. Há autenticidade no sotaque napolitano que Favino imita, complementado com sonoridades estrangeiras – é a voz do emigrante cuja língua já não está habituada a falar na língua materna.
Por falar em maternidades, ora idiomáticas ou sanguíneas, o grande foco de “Nostalgia” em seus primeiros atos está na figura da mãe. Teresa e o filho reencontram-se já perto do fim, quando o peso da idade a invalida e o Anjo da Morte projeta sombra sobre a sua alma. Testemunhar a incerta meiguice entre Felice e sua mãe é como violar a intimidade escondida de outra pessoa. Tanto Favino como a atriz Aurora Quattrocchi interpretam o reencontro com enorme elegância, impregnando todo o silêncio com palavras por dizer e verdades mudas. Até a forma como relacionam os corpos é soberba, papéis de cuidadora e cuidado trocados pelo flagelo do tempo.
Tão belas são essas passagens que é impossível não sentir mágoa quando “Nostalgia” avança para outra estação da cruz, concluindo o suplício do filho retornado para ponderar os dilemas do amigo que traiu amigo. A grande reviravolta tonal ocorre com o manifesto do flashback, prolongada sequência em formato diferente e estilização à filme de época. Teresa sepultada, o mistério da fuga regressa com força e novas figuras se levantam. São elas o Luigi Rega e Oreste Spasiano, um padre que luta contra os efeitos da Camorra na comunidade e esse espectro do passado tornado padrinho do presente.
Apesar da continuidade melancólica do exercício e da fidelidade para com o romance de Ermanno Rea em que o filme se baseia, a estrutura dividida sugere a comparação e “Nostalgia” tem a infelicidade de terminar com o seu pior material depois de conquistar a audiência com os dilemas mais universais de Felice. Mesmo nessa desilusão, os atores nunca vacilam, quer sejam os jovens em memórias felizes ou os adultos cujas caras são esculturas de rugas, o tempo como cinzel sobre o mármore da cara. Olhos tristes brilham no escuro, feixes de luz que rompem as sombras espessas da imagem. Dito isso, o maior ator e a maior personagem de todas não são qualquer humano, mas o cenário napolitano em si.
Se Favino é a estrela em frente à câmara, o diretor de fotografia Paolo Carnera assume-se vedeta dos bastidores. Através dos seus olhos astutos, Nápoles emerge como uma assombração onde até a textura degradada dos edifícios deixados tem o seu quê de belo. Muitas são as sequências em que seguimos Felice em deambulante inação, sua ligação à cidade produzindo imagens arrebatadoras que não escondem a realidade mas também não repudiam a sentimentalidade do momento. É aquela linha nostalgia que aqui se afigura em máximo poder, moldando a experiência cinematográfica à forma da lembrança agridoce, essas realidades complicadas que a câmara sintetiza em gloriosa projeção.
Nostalgia, em análise
Movie title: Nostalgia
Date published: 20 de November de 2022
Director(s): Mario Martone
Actor(s): Pierfrancesco Favino, Francesco Di Leva, Tommaso Ragno, Aurora Quattrocchi, Sofia Essaïdi, Nello Mascia, Emanuele Palumbo, Artem, Salvatore Striano, Virginia Apicella, Daniela Ioia, Luciana Zazzera, Giuseppe D'Ambrosio
Genre: Drama, 2022, 117 min
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Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO:
O candidato italiano ao Óscar para Melhor Filme Internacional é uma narrativa dividida e muito pessoal para seu autor, onde o peso da memória marca cada imagem, cada suspiro e olhar triste. Pierfrancesco Favino e Mario Martone confirmam-se equipa de sucesso, mas quiçá não tenha sido boa ideia apelar ao espírito de Pasolini logo na primeira cena. A comparação não é simpática para “Nostalgia,” que, não obstante sua óbvia qualidade, nunca chega aos calcanhares desse outro mestre do cinema italiano. Pelo menos, fica aqui um postal complicado de uma cidade tantas vezes vista como um cliché quando filmada por cineastas vindos de fora.
O MELHOR: A fotografia de Carnera e as prestações de todo o elenco, com especial destaque para Favino, sua presença inconfundível e mestria técnica.
O PIOR: A história da Camorra está a mais em “Nostalgia,” banalizando a delicadeza de uma primeira metade tão mais forte que a segunda. Quiçá o filme vingasse mais se o seu mistério central fosse deixado em paz, permanecendo misterioso.
CA