"Leave No Traces" | © LEFFEST

LEFFEST ’21 | Leave No Traces, em análise

“Leave No Traces”, também chamado “Zeby nie bylo sladów” no seu idioma original, é um ambicioso filme sobre um episódio vil na História da Polónia. A obra, do realizador Jan P. Matuszynski, competiu no Festival de Veneza e também integra a secção competitiva do Lisbon & Sintra Film Festival. Na corrida pelo Óscar para Melhor Filme Internacional, o filme vai representar a Polónia.

No rescaldo da 2ª Guerra Mundial, o povo da Polónia viu seus opressores caírem para serem rapidamente substituídos por outras forças ditatoriais. Da autocracia fascista passou-se para uma tirania comunista, um fado violento que condenou a nação a um fado tumultuoso e sangrento. Há décadas que este destino triste propulsiona algum do melhor cinema político dessa terra do Leste. Veja-se, por exemplo, a filmografia completa de Andrzej Wajda, desde o retrato transicional de “Cinzas e Diamantes” até ao apelo da Solidariedade patente na duologia de “Homem de Mármore” e “Homem de Ferro”. Ainda nos dias de hoje, a cicatriz histórica dói e reverbera pela arte polaca.

O jovem Jan P. Matuszynski tem-se mostrado como um estudioso da História polaca desde o início da carreira. Até hoje, o seu filme mais conhecido e aclamado foi “A Última Família”, um retrato do pintor Zdzislaw Bekinski e sua tragédia familiar. Nessa fita, os movimentos históricos e políticos influenciam a vida doméstica, mas existem num patamar atrás do drama humano. O seu novo filme troca as voltas a esse modelo, afigurando-se um drama histórico com obsessiva atenção ao detalhe processual. Também o foco se expande, da casa familiar, para os corredores do poder, as prisões, os tribunais e um submundo em luta pela liberdade.

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A ação começa nos últimos meses da lei marcial em 1983, quando o filho de uma poetisa ativista foi atacado pela polícia. Grzegorz Przemyk celebrava o fim dos seus estudos secundários quando, a 12 de Maio, ele e um grupo de amigos foram abordados pelas autoridades policiais. Depois de uma sumária demanda pelos documentos de identificação, os agentes da Milícia Armada começaram a espancar Przemyk e um dos seus companheiros. Para não bastar este incidente de violência policial, os dois jovens foram encaminhados para a esquadra mais próxima, arrastados à força. Lá, novos agentes se abateram sobre o par, dando especial ênfase a Przemyk.

Apercebendo-se da gravidade das feridas infligidas, a polícia tentou cobrir o seu crime com a chamada de uma ambulância, dizendo que a sua vítima era um toxicodependente num episódio psicótico. No hospital, o jovem foi tratado como se estivesse drogado e as suas feridas internas não foram sequer registadas pelos médicos. Nas poucas horas de consciência que lhe restavam, o miúdo espancado referiu que os polícias tinham agido sob ordens para lhe bateram na barriga, de modo a evitar hematomas visíveis. De modo a não deixar marcas ou evidências. Regressado ao hospital depois de a mãe o ter levado a casa, o efeito dessas pancadas tornou-se evidente.

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Os intestinos do adolescente haviam-se perfurado, quase desintegrado. Relatos descrevem como ele começou a vomitar as próprias fezes e que, quando o tentaram salvar na cirurgia, não havia nada a fazer. Ele morreu na unidade de cuidados intensivos, despoletando um encobrimento por parte das autoridades e do Estado. As testemunhas foram perseguidas e pressionadas, histórias falsas foram difundidas e, no fim, a polícia culpou um dos condutores da ambulância e nenhum dos atacantes foi condenado. O homicídio de Grzegorz Przemyk tornou-se em causa política, um exemplo suprassumo da corrupção na Polónia e do poder desmesurado das forças policiais e militares.

Tudo isto Matuszynski retrata no seu filme, fazendo algumas concessões dramatúrgicas em nome da síntese. Os vários amigos que testemunharam o incidente são condensados na figura do protagonista, Jurek Popiel, usando o conflito interno do indivíduo para expor todos os engenhos da opressão comunista na Polónia. A figura materna, Barabra Sadowska, aparece com seu nome real e assume-se como coprotagonista da trama, uma mãe enlutada que vê, impotente, como a morte do filho é apagada e a justiça lhe é negada. Com quase três horas, ver “Leave No Traces” é uma experiência agonizante que termina sem sombra de catarse. A conclusão é necessariamente inconclusiva pois, na vida real, a tragédia acabou assim mesmo.

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Como que a compensar a sua falta de final, o realizador dedica todas as forças a uma expressão de fúria absoluta. “Leave No Traces” é um filme a borbulhar de raiva, documentando as várias facetas da conspiração ao jeito de uma autópsia enlouquecida. Sentimos o fulgor do artista no modo como ele disseca o cadáver da manipulação estatal, na forma como expõe as inglórias injustiças do sistema e aponta o dedo aos órgãos podres de uma história que a História esqueceu. Também há uma forte noção de crimes repetidos, um reflexo do passado no presente e um perpetuar dos mesmos pesadelos por todo o mundo. Estreado um ano depois dos protestos que assolaram o globo em reação à morte de George Floyd, esta fita é tristemente atual.

Não que o cineasta ou sua equipa promovam uma estilização que, em qualquer medida, esbate as especificidades temporais do caso. Pelo contrário, existe uma atenção microscópica ao detalhe histórico, desde questões cenográficas ao próprio discurso pessoal de poetas e ativistas, estudantes idealistas e polícias corruptos. Até a textura do ar remete para o passado, com o diretor de fotografia Kacper Fertacz, a inundar salas abafadas com fumo de cigarros e manchas de nicotina. Contudo, é a cenografia que se afigura estrela da fita, concretizando as hierarquias humanas em espaços arquitetónicos. Tanto é o seu dramatismo que, a certo ponto, parece que os mecanismos do Estado se sobrepuseram totalmente à presença humana, mesmo dentro do jogo da fita.

Essa vertente é intelectualmente sã, uma conclusão racional de uma história onde a pessoa que defende a verdade é esmagada pela pressão coletiva de um Estado injusto. Contudo, o que funciona num paradigma cerebral, nem sempre triunfa em termos narrativos. E assim é que “Leave No Traces” se revela um objeto lacerante cujos poderes de asfixia são quiçá demasiado prodigiosos. Chega a certo ponto e o espetador vê-se subjugado a pose súplica, pedindo misericórdia a um filme que só se interessa em magoar quem o vê. Sem manchar a grandeza do exercício, a marginalização das personagens tira alguma da especificidade psicológica à fita. Além disso, esconde a complexidade que os atores trazem ao filme, com especial ênfase em Tomasz Zietek e Sandra Korzeniak nos papéis principais. Eles e “Leave No Traces” brilham uma luz hedionda, mas, ocasionalmente, parece que o fazem apesar dos esforços do realizador e não em sua consequência.

Leave No Traces, em análise
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Movie title: Zeby nie bylo sladów

Date published: 20 de November de 2021

Director(s): Jan P. Matuszynski

Actor(s): Tomasz Zietek, Sandra Korzeniak, Jacek Braciak, Agnieszka Grochowska, Robert Wieckiewicz, Tomasz Kot, Aleksandra Konieczna, Adam Bobik, Bartlomiej Topa, Andrzej Chyra, Michal Zurawski, Jerzy Bonczak, Mikolaj Grabowski, Dariusz Chojnacki

Genre: Drama, História, 2021, 160 min

  • Cláudio Alves - 72
72

CONCLUSÃO:

Cheio de sangue e fúria, “Leave No Traces” é mais uma prova da imaculada técnica de Jan P. Matuszynski e sua obsessão com a faceta mais negra no passado do seu país. Infeliz e sufocante, o filme não oferece catarse nem pinga de felicidade, sendo uma experiência difícil de suportar com importantes mensagens e ideais preciosos.

O MELHOR: A cenografia detalhada, a violência visceral da primeira sequência, a ira com que Matuszynski compõe todo o filme e sua mensagem contra a apatia e contra o silêncio face à opressão.

O PIOR: “Leave No Traces” é demasiado longo e tonalmente invariável. Além disso, a banda-sonora repetitiva parece mais adequada a um telefilme barato que a tamanho épico sobre a História da Polónia.

CA

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