"O Corno do Centeio" | © Bando à Parte

LEFFEST ’23 | O Corno do Centeio, a Crítica

“O Corno do Centeio,” também conhecido como “O Corno” e “The Rye Horn,” é uma coprodução luso-galega que conta a história de uma foragida em 1971. O filme de Jaione Camborda passou no LEFFEST como parte da Seleção Oficial – Fora de Competição.

Uma mulher chora no quarto, sua cara contorcida num grito deformante e o suor escorrendo pelas costas. Em suplício, ela age como se o corpo lhe estivesse a explodir, com os dentes cerrados à força e a fazer os tendões do pescoço virem ao de cima. A câmara mantém-se impávida perante o quadro, perdida algures entre um registo observacional de documentário e algo mais perigoso. No entanto, a cena não se faz só da mulher que sofre e o olho que a observa. Outras pessoas estão naquele quarto. São elas uma filha adolescente que não sabe bem o que fazer, um marido ainda mais incapaz mantendo os meninos mais novos do outro lado da porta fechada.

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Crucialmente, María está presente, em jeito de parteira para consolar a grávida e trazer nova vida ao mundo. Sim, esta abertura estrondosa é um parto, todo construído através de planos longos e muito sôfregos, arrebatando o espetador com intensidade daquela que imerge a mente e transtorna o espírito. A dor dela é palpável, visceral, e o alívio vem como um milagre. Trata-se de uma das várias sequências em que a realizadora Jaione Camborda nos mostra porque razão o Júri de San Sebastián a galardoou com o seu prémio principal. Apesar deste “Corno do Centeio” ser somente a sua segunda longa-metragem, a cineasta já nos mostra sinais de mestria e génio.

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Terminado o parto com um final feliz, ao invés de seguir a mão, Caiona e sua câmara vão com a parteira, perscrutando a sua vida de agricultora na Ilha de Arousa, em 1971. É uma existência pacata, talvez até um pouco solitária, onde o tempo se divide entre trabalhar a terra e o auxílio a novas mães. María não tem filhos seus e uma cicatriz no ventre sugere algum evento traumático por detrás da ausência. Só se sugere, é claro, pois este é um filme em que o comportamento é mais verdadeiro que a palavra, puxando a atenção do espetador para longas passagens onde pouco ou nada acontece além do quotidiano. Mas, da banalidade nasce o drama de vida ou morte.

Em rima com a abertura, iremos ver outra comunhão de choro e ansiedade entre María e outra mulher grávida. Só que, desta vez, o fim é diferente em mais modos que um. A paciente é a adolescente que vimos no início, uma jovem aterrorizada pelo que a gravidez significa para o seu futuro e que, no desespero, recorre à ajuda da parteira. Quase que chantageada pela insinuação do rumor, María lá recolhe esporões no campo de centeio local, preparando o remédio para induzir o aborto. Há um casamento de ideias nestas cenas, dualidade que também é comunhão, complicado ainda mais pela euforia depois do aborto.


Na mesma noite, María vai à festa da aldeia, onde um ilusionista lhe capta a atenção. Entre bebidas e olhinhos, os dois passam do furor da multidão à intimidade de um passeio à luz da lua. Eles fazem amor no campo, seu orgasmo como que sobressaltando “O Corno do Centeio” até que o rescaldo do dia seguinte faz cair o Carmo e a Trindade. A desgraça abateu-se sobre Arousa e María tem que fugir o mais depressa possível. De repente, o filme sofre a metamorfose, idílios campestres dando lugar a uma narrativa na vertigem do thriller, o diálogo sumido na travessia da protagonista pela paisagem Galega, rumo à fronteira com Portugal.

Jaione Camborda pouco faz para salientar as especificidades da época, até que as realidades da Península Ibérica em 1971 se fazem sentir, suas ditaduras irmanadas uma força invisível sobre as personagens. Também se evidencia uma vertente de irmandade entre mulheres, entreajudas muito além do serviço de parteira, delineando redes de conspiração contra as injustiças do estado, da sociedade, talvez até do corpo. Aqui, o filme salta nacionalidades e o elenco expande-se, incluindo uma prestação cativante de Siobhan Fernandes no papel de Anabela, uma trabalhadora do sexo afro-portuguesa cuja guarida se torna santuário para María.

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Dito isso, a chave para o sucesso do “Corno do Centeio,” o alicerce que aguenta toda a produção é a incrível Janet Novás. No papel de María, ela está quase sempre no centro gravitacional da fita, magnetizando o ecrã com pouco mais que um olhar ansioso, expressão saturnina e interioridades. Por um lado, Camborda nunca penetra o espírito da mulher ou viola a barreira entre a câmara e sua protagonista. Nunca se sacrifica a observação paciente por alguma subjetividade psicológica. Por outro, tais escolhas perfazem um realismo daquele que arrebata apesar da sobriedade e formas severas, da montagem compassada e do texto delgado.

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No fim, contudo, também há uma certa limitação nesta abordagem. O tema do aborto, a autoridade e autonomia da mulher sobre o seu próprio corpo, é obviamente político, mas os valores deste “Corno do Centeio” são difíceis de apurar. Não exigimos didatismo, mas há leituras reacionárias prontas a emergir no verso estabelecido entre princípio e fim da história. Também o apelo ao contexto histórico-político podia ser mais vasto, mais forte, ao invés da quase-abstração que temos em evidência. E isso nem teria que distender a duração, visto que alguns momentos da estrutura podiam ser encurtados. Às vezes, até o dito slow cinema deve apressar o ritmo.

O Corno do Centeio, a Crítica
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Movie title: O Corno

Date published: 17 de November de 2023

Director(s): Jaione Camborda

Actor(s): Janet Novás, Siobhan Fernandes, Carla Rivas, Daniela Hernán Marchán, María Lado, Julia Gómez, José Navarro, Nuria Lestegás, Darío Fernández Raposo, Flako Estevez, Filomena Gigante, Pamela Vidal

Genre: Drama, 2023, 105 min.

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Em colaboração com a portuguesa Bando à Parte, a realizadora Jaione Camborda assina mais uma joia de cinema espanhol para 2023. Este tem sido um ano fenomenal para os filmes desse país, com este campeão de San Sebastián a merecer muitos aplausos também. “O Corno do Centeio” é um grande feito de drama observacional, fundamentado no comportamento e na sobrevivência das mulheres presas num sistema que age contra elas.

O MELHOR: A maravilhosa Janet Novás e as sequências mais emocionais da fita. Falamos do parto prólogo, do aborto, da festa de aldeia e a travessia entre nações na calada da noite.

O PIOR: O choque do fim e as leituras mais conservadoras que daí podem surgir, a ambiguidade em demasia, a estrutura imprecisa.

CA

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