Licorice Pizza, em análise
“Licorice Pizza” é a décima longa-metragem realizada por Paul Thomas Anderson. O filme tem sido aclamado pela crítica internacional e já ganhou inúmeros prémios, incluindo o BAFTA para o guião que Anderson assinou. Na corrida para os Óscares, “Licorice Pizza” está indicado para três galardões – Melhor Argumento Original, Melhor Realização e Melhor Filme.
Por que correm tanto eles? Correm na fuga da catástrofe, más situações e angústias sociais. Eles correm na direção de um futuro incerto, buscando algo que eles pensam ir resultar em alegria. Mas não vai, não neste mundo e não para estas personagens. No fim, eles correm para escapar à realidade, tão cegos pelo sonho que, imperativamente, vão tropeçar e cair em mais uma desgraça, cara esmagada no chão e corpo moído de dor. Ela, em particular, está a correr para fugir de si mesma. No entanto, tal escapatória é impossível. No fim da corrida não há um final feliz, somente um atraso do inevitável desassossego.
Desde a estreia que “Licorice Pizza” tem vindo a causar controvérsia e a surpreender espetadores, nem sempre pela positiva. Parte dessas reações devem-se a uma essencial desconexão entre a realidade do filme e o modo como se tem apresentado ao público. Apesar de ter um clarividente sentido de humor, a última obra de Paul Thomas Anderson não é bem uma comédia. A descrição mais correta nomearia o filme como uma rapsódia de desapontamentos, um retrato de fracassos em série. Trata-se de um trabalho deliberado, preciso na sua melancolia e evocação de um passado lembrado com franqueza.
Esse último elemento é especialmente importante. Por muito que o cinema de Anderson trespasse paixão pela Califórnia dos anos 70, a sua retrospetiva não tomba na nostalgia. O ontem não é idealizado, mas sim reproduzido com um sentido de grande autenticidade. Visualmente é visceral, cheio de texturas em degredo e uma atmosfera bafienta, como uma fita da época que, por milagre ímpio, andou escondida até agora. Veja-se a fotografia feita pelo realizador com o auxílio de Michael Bauman. A imagem, que parece saída de um filme de Robert Altman, é bela e feia em simultâneo, qual película envernizada em gordura e pátina velha.
Acreditamos que já deve haver algum leitor enfadado com toda esta ponderação estilística. Contudo, defendemos o nosso enfoque. Mesmo para quem veja o cinema como uma arte de contar histórias, é importante ponderar como essas mesmas histórias são contadas. Por isso mesmo, uma análise de “Licorice Pizza” está incompleta sem se considerar assuntos formalistas. São através deles que os reais temas do drama se revelam. Afinal, os tons provocados pela execução audiovisual alteram o modo como absorvemos a narrativa de Gary Valentine e Alana Kane. São eles os que correm sem destino.
Vemo-lo primeiro a ele, aperaltando-se na casa-de-banho escolar, mais um miúdo entre tantos outros. É dia da fotografia e o ecossistema educativo foi invadido por estranhos, o fotógrafo e suas assistentes. Estas últimas organizam os alunos em filas regimentadas e algumas até passeiam índoles por entre o corpo estudantil, oferecendo espelho e escova para quem queira verificar a aparência antes do flash. Alana assim nos aparece, uma jovem adulta deambulando por um mundo de crianças. É evidente, contudo, que a diferença geracional não impede alguns rapazes de se insinuarem a ela, cativados quiçá pela sua suposta maturidade.
Gary rapidamente se emplastrou a Alana, incitando um cortejo forçoso que dura todo o filme. Daí para a frente, a narrativa desenrola-se sem grande estrutura, fazendo a crónica de 1973 enquanto vivido pelo par. Conhecemos o adolescente atrevido pela profissão de ator infantil, mas também o entendemos enquanto empreendedor fanático. Ele é o espírito capitalista de Hollywood personificado na forma de um rapaz borbulhoso. Anderson ter-se-á baseado num antigo amigo seu quando escreveu a personagem. Também no casting há uma conexão pessoal, sendo Cooper Hoffman o filho do falecido Philip Seymour Hoffman, frequente colaborador de Anderson.
Se, apesar da natureza caricata, Gary é uma figura relativamente simples, Alana é o contrário. A sua falta de rumo é muito mais evidente e há uma nuvem de miséria sempre por cima da cabeça dela. O modo como é incapaz de encontrar propósito remete para a tragédia, tal como a sua inabilidade de se relacionar com qualquer pessoa que não seja um adolescente. Todos os homens da sua vida com exceção do pai veem-na como objeto, como utilidade, como uma não-entidade. Só Gary lhe presta atenção e, apesar de um romance ser tabu e condenado ao desastre, ela gravita na sua direção. Tal é a sede de validação que o bom senso é deixado para trás.
Alana Haim, cuja banda já muitas vezes trabalhou com o realizador, é a atriz principal, fazendo aqui a sua estreia enquanto intérprete. Seu papel é infinitamente mais complicado que o de Cooper Hoffman, mas a atriz noviça não mostra quaisquer dificuldades. Ela é uma estrela inata, articulando toda a culpa, todo o desconforto e precipitante orgulho que motivam os comportamentos erráticos da personagem com quem partilha o nome. Apesar de o elenco secundário ser um tesouro sem fundo de grandes atores, Haim é a alma entristecida de “Licorice Pizza.” Nas suas mãos, a comédia complica-se e perde a graça, mas a psicologia brilha. Graças a ela, uma promessa de amor sabe a mentira. Não é uma mentira dita para ludibriar o outro, mas uma falsidade proferida para convencer quem a conta. Só que, para fugir à realidade, não há mentira forte o suficiente, não há corrida veloz que baste.
Licorice Pizza, em análise
Movie title: Licorice Pizza
Date published: 23 de March de 2022
Director(s): Paul Thomas Anderson
Actor(s): Alana Haim, Cooper Hoffman, Bradley Cooper, Sean Penn, Tom Waits, Benny Safdie, Donna Haim, Danielle Haim, Este Haim, Moti Haim, John Michael Higgins, Mary Elizabeth Ellis, Skyler Gisondo, Christine Ebersole, Harriet Sansom Harris, Joseph Cross, Maya Rudolph, John C. Reilly
Genre: Comédia, Drama, Romance, 2021, 133 min.
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO:
Apesar de não suceder enquanto comédia, “Licorice Pizza” triunfa como estudo de personagem e, em certa medida, como estudo de uma época em Hollywood. Com um elenco recheado de figurões, desde Tom Waits a Bradley Cooper, a obra recorda os trabalhos iniciais de Paul Thomas Anderson, quando o seu gosto por retratos coletivos se construía em homenagem ao cinema de Robert Altman.
O MELHOR: A interpretação de Alana Haim, o cameo de Harriet Sansom Harris e toda a materialização de uma Califórnia perdida nas páginas da História.
O PIOR: Há uma personagem baseada em figura real que interpreta algumas das cenas mais racistas imagináveis. O desconforto é parte do jogo, e jamais sentimos que Anderson está a defender o comportamento. Contudo, é um pormenor que teria melhor beneficiado o filme se tivesse sido excisado na mesa de montagem.
CA