Lula, a Crítica | O retrato de um líder, do Festival de Cannes para o Doclisboa
Num documentário político capaz de emocional o auditório principal da Culturgest, Auditório Emílio Rui Vilar, “Lula”, de Oliver Stone e Rob Wilson, afirma-se como uma obra empolgada e empolgante. Pode não acrescentar muito à história de Lula da Silva, mas narra-a com o ímpeto necessário para o divisivo momento político que vivemos.
“Lula”, obra documental convencional mas poderosa, passou por Portugal no Doclisboa depois de um percurso de festival que se iniciou com a estreia em Cannes.
Lula (2024) e a retórica dos sonhadores
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“Claro que estava na sessão, chorando com o meu presidente, depois de tudo o que passámos nessa eleição”. Ouvi eu à saída da Culturgest, após a primeira exibição do documentário “Lula”. Uma obra particularmente educativa, senão até um pouco panfletária, “Lula” tem um trunfo inegável que sentimos nos ossos à saída da sala de cinema: é um filme capaz de emocionar.
Muito bem ritmado e montado, com uma edição contagiante, embora tradicional para este formato fílmico, “Lula” conta a história de um incrível símbolo de esperança para o Brasil. É emotivo, bem-disposto e enfático.
Pinta Lula da Silva numa luz positiva e luminosa, recuperando o seu trajeto, desde o momento em que nasceu na total pobreza, até à sua vitória das eleições em 2002, com 61% dos votos – o candidato mais votado de sempre, o primeiro oriundo de uma “working class” a chegar ao mais importante cargo no país e um triunfo para uma esquerda progressista e reforça-se (na obra), não comunista, não obstante as acepções erradas por parte de críticos e dissidentes.
O filme passa posteriormente pela caça às bruxas da Operação Lava Jato, pelo seu julgamento sumário e contrário à lei internacional, pelo impeachment de Dilma Rousseff, pela pena de prisão de Lula, subsequente libertação e pelo acidental hacking que fez com que pudesse ser ilibado, com a imagem pública limpa, e uma vez mais eleito presidente em 2022, com terceiro mandato a começar em 2023 e aos 77 anos.
Um homem imparável nesta obra do Doclisboa 2024
Oliver Stone e Rob Wilson, que ancoram o documentário a partir de uma entrevista com Lula da Silva, face a face, durante o período pandémico, desenham a representação de um homem incansável e capaz de trabalhar afincadamente para cumprir os seus objetivos. Os de colmatar a pobreza no Brasil, os de tornar o PT numa genuína representação dos trabalhadores, os de proteger a Amazónia.
Enquadrada como uma verdadeira luta pela sobrevivência de um dos grandes pulmões do planeta, a narrativa de “Lula” explora os pontos centrais da política do seu sujeito tal e qual como expostos pelo próprio – com um vigor inspirador e nunca decrescente. Intercalam-se também muitas imagens de arquivo, as quais nos contam, do início da vida até ao momento mais recente, todas as metas inconcebíveis e quase surreais (e perdas) que Lula da Silva ultrapassou, bem como os dissabores – da morte de duas esposas e de um filho por nascer, à capacidade de chegar ao cargo mais alto do seu país sem formação académica.
Não existe, contudo, um endeusamento. Luiz Inácio Lula da Silva é enquadrado como um homem pragmático, com um sentido de humor inato e uma capacidade de encaixe e de relativizar que muito lhe serviram. Serviram, por exemplo, para manter a calma face às agressões verbais de Jair Bolsonaro, isto já nos momentos finais da obra, quando nos confrontamos com a sua luta para um terceiro mandato, numa recuperação política quase inaudita.
O excelente argumento por parte de Alexis Chavez e Kurt Mattila é, em grande parte, responsável pela jornada que, enquanto espectadores, atravessamos com Lula da Silva, Oliver Stone e os restantes intervenientes da obra. Em “Lula” existem heróis nítidos, mas também claros antagonistas (Sérgio Moro, Jair Bolsonaro), cujas retóricas incendiárias são ridicularizadas e desvalorizadas. E por muito sofrimento que estas possam ter causado, o pragmatismo de Lula é uma lufada de ar fresco num mundo onde o ódio parece querer ganhar.
Já Heitor Pereira tratou da música, e que música: motivadora, capaz de incitar à ação e de nos deixar agarrados à cadeira com frenesim notório ( por vezes, esta chega mesmo a ser arrepiante e destabilizadora).
Neste sentido, esta co-produção entre os Estados Unidos e o Brasil é verdadeiramente uma criação ‘à lá Americana’, onde a emoção suplanta a intelectualização, mas onde a pedagogia ocupa também um lugar definidor. As cenas são rápidas, os seus cortes também, o que mantém o interesse bem palpável e um constante envolvimento de parte de quem vê.
É inegável também que o documentário transporta consigo a marca clara e distinta de Oliver Stone (“JFK”, “Snowden”), dedicado a desmascarar as forças opressoras do nosso século XXI e a cumplicidade da sua terra natal.
Oliver Stone e a crítica à ação norte-americana
Por outro lado, grande parte do documentário é mesmo passado a explicar o que aconteceu com a Operação Lava Jato, a teorizar um possível envolvimento americano e a refletir sobre a relação entre os Estados Unidos, o Brasil e os restantes países da América Latina.
Esta crítica é um dos aspetos mais interessantes da obra, que nunca deixa de mostrar (e reforçar) quem são os antagonistas da América do Sul à escala internacional. Curiosamente, Lula reflete acerca de uma relação comercial mais positiva com George W.Bush do que com Obama, devido às políticas proteccionistas dos Democratas, o que à priori poderá surpreender quem veja o filme e assumir-se assim como um dos trunfos da obra – alguns momentos espontâneos e de revelação que surgem nas entrevistas.
Outro aspecto muito positivo relaciona-se com a intervenção de Glenn Greenwald, jornalista, escritor e advogado americano que participa amplamente no processo de entrevistas do filme e narra com entusiasmo, clareza e conhecimento de causa os eventos que levaram à incriminação de Lula e posteriormente à sua libertação. Não tivesse sido ele em grande parte responsável pela revelação do caso através da plataforma de jornalismo de investigação theintercept.com. Isto aliado aos esforços do hacker que descobriu a informação trabalhada – Walter Delgatti Neto.
Contudo, é Greenwald que nos troca por miúdos com incrível retórica todos os eventos que levaram a um extraordinário reverter de uma condenação abismal e ilícita.
Um final mais tenebroso para esta obra exibida no Doclisboa
O filme termina com as eleições de 2022, que opuseram Lula da Silva a Jair Bolsonaro. O reino do terror do primeiro mandato ‘Bolsonarista’ é também enquadrado brevemente, bem como os resultados com uma margem mínima que refletem a divisão de um país depois da terrível herança de quatro anos deste “Trump Tropical”.
Com as retóricas de ódio a serem ouvidas alto e bom som, com a Maré Rosa ou ‘Guinada à Esquerda’ destruída com consequências económicas devastadoras, com um crescimento poderoso da extrema direita, filmes como “Lula” ocupam um lugar pertinente de consciencialização.
Talvez já conhecêssemos todos os eventos aqui relatados, mas foram-nos apresentados com particular ênfase e com uma cadência poderosa. Ouvi uma sala que ria, chorava e que aplaudiu entusiasticamente no final. Mesmo perante um presente menos esperançoso, para as Américas e para a Europa, símbolos vivos como Lula da Silva despertam a nossa consciência coletiva como cidadãos, tal qual como podemos confirmar neste Doclisboa.
Vimos “Lula” na sua primeira sessão, a 25 de outubro. A obra repete no dia 27 de outubro, pelas 21h45, no Cinema Ideal. Integra-se na Secção “Da Terra à Lua”, e é uma proposta comovente entre as que fecham o Doclisboa em 2024.
Lula, a Crítica
Movie title: Lula
Movie description: Retrato íntimo e revelador de uma das figuras políticas mais influentes do mundo, Lula analisa a ascensão, queda e regresso triunfante do adorado dirigente brasileiro Luiz Inácio “Lula” da Silva, narrando o seu percurso extraordinário, em 2022, para reconquistar a presidência do Brasil após passar dezanove meses na prisão. Com acesso sem precedentes a Lula e aos seus conselheiros mais próximos, oportuno e cativante, o filme é um aviso do perigo crescente que a guerra jurídica representa para as democracias em todo o mundo e uma análise de uma das maiores histórias de regresso político do nosso tempo (Doclisboa).
Date published: 26 de October de 2024
Country: EUA, Brasil
Duration: 92'
Director(s): Oliver Stone, Rob Wilson
Genre: Documentário
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Maggie Silva - 80
Conclusão
Num documentário político capaz de emocional o auditório principal da Culturgest, Auditório Emílio Rui Vilar, “Lula”, de Oliver Stone e Rob Wilson, afirma-se como uma obra empolgada e empolgante. Pode não acrescentar muito à história de Lula da Silva, mas narra-a com o ímpeto necessário para o divisivo momento político que vivemos.