Maria Schneider, a Crítica | O outro lado do Último Tango em Paris
Anamaria Vartolomei está excelente no papel de Maria Schneider, a atriz que chocou o mundo em 1972 com “O Último Tango em Paris” e viria a causar ainda mais polémica quando se manifestou contra os abusos que sofreu durante as filmagens.
Maria Schneider nasceu filha ilegítima do ator Daniel Gélin e da modelo Romena Marie-Christine Schneider. Em certa medida, a sua vida esteve sempre destinada ao mundo do espetáculo, esse negócio de exibicionismos e almas vendidas, entretenimento de massas, à sua mercê sob a luz da ribalta. No seu livro, “My Cousin Maria Schneider,” Vanessa Schneider relatou a juventude complicada da prima, contando como Maria primeiro conheceu o mundo do cinema através do pai com quem teve relação próxima não obstante pronunciamentos em contrário. É numa dessas ocasiões que o filme de Jessica Palud tem início, sendo uma adaptação fragmentada dessa biografia literária.
A cena começa no plateau, quando Gélin trabalha para a câmara e a sua filha observa, deleitada com os afazeres deste mundo de artifício e mentira, o faz de conta que inspira orgulho no coração da rapariga. O momento sabe a doce, mas há amargura na língua de quem sabe para onde esta história está encaminhada. Afinal, seguir carreira de atriz não foi um sonho tornado realidade para Maria. Mais do que isso, terá sido um pesadelo. Mas estas primeiras passagens deixam-se levar pelo idealismo da juventude, as aspirações rosadas e expetativas ilusórias, vontades fortes que levam ao conflito com a mãe e a expulsão de casa.
Expõe-se a normalização de abusos no cinema.
Ainda adolescente, já Maria tem que procurar guarida na casa de outros familiares, um tio amado que a deixa seguir o caminho do espetáculo. É essa ambição que a leva a travar conhecimento com Bernardo Bertolucci, um enfant terrible da vanguarda italiana que, na altura, ainda estava longe de ser o mestre consagrado que os cinéfilos de hoje associam ao seu nome. Sem precisar de audição sequer, o cineasta escolhe Maria para o drama erótico “O Último Tango em Paris,” só pela imagem e pelo charme apurado numa conversa de café. Ainda cedo, somos levados a entender que a inocência da jovem faz parte do seu apelo para o realizador. Ela é algo frágil, vulnerável e, acima de tudo, verdadeira.
Não que Palud esteja aqui para delinear um ataque unilateral a Bertolucci. Quiçá o aspeto mais tenebroso de “Maria Schneider” é quanto a fita evita vilificar os homens que, intencionalmente ou não, tomam parte na exploração traumatizante da atriz. Existe uma normalização de táticas abusivas na indústria, de tal modo que uma pessoa não precisa de ter calculada perfídia para magoar o outro, especialmente quando se trata de homens a tomar partido das suas colegas. A técnica naturalista de Bertolucci, com base em improvisação, aparece-nos como uma procura de crueza humana, de algo precioso e raro. É inspirador, até mesmo para a Maria Schneider que conhecemos nesta fita. Mas também é um palco para transgressões.
Cerca de meia hora passada desde a primeira cena, “Maria Schneider” chega àquele fatídico dia, quando, sem informar a sua atriz, Bertolucci e Marlon Brando decidiram improvisar uma cena de sexo em que o protagonista penetra a amada com o auxílio de um punhado de manteiga. Mantendo a câmara na cara da sua personagem titular, Palud chama toda a atenção para a angústia de uma rapariga sem experiência profissional a ser sistematicamente humilhada. Não é exagero descrever o que acontece como uma violação ou, pelo menos, um abuso de confiança caído num contexto salaz. Ninguém aqui questiona a qualidade de “O Último Tango em Paris” ou dessa cena no filme de Bertolucci. O que se questiona é a metodologia.
Tudo se justifica em nome da arte? Não para Schneider ou para Palud que, em início de carreira, também trabalhou sob a alçada do mestre italiano. Mas, se há moralismo aceso em “Maria Schneider,” este regista-se fora do plateau de “O Último Tango em Paris.” Por muito que Palud examine negativamente essa experiência, o tratamento da imprensa para com a figura titular é talvez ainda mais monstruoso, filmado quase que em tons de terror. Uma conferência pejada de flashes é como uma alucinação, um transtorno que paralisa e ecoa pelo resto da história. Tanto em cenários de outros filmes ou na vida privada, o escrutínio do público faz-se sentir, ferida viva na carne e na mente.
Mais uma tour de force de Anamaria Vartolomei!
Sem julgamentos impostos ao sujeito da sua pesquisa, “Maria Schneider” afigura-se uma cinebiografia estranhamente contida, quase seca. A telenovela bombástica evita-se apesar das emoções serem intensas e sempre à flor da pele, enquanto a nostalgia pela história do cinema se contém em enquadramentos limitados. Muitas sequências são encenadas exclusivamente em grande plano e, mais do que uma narrativa, a segunda metade da fita toma a forma de um estudo de personagem onde o objeto de estudo foge ao perscrutar da câmara, do espectador, do fetichista. É como se, no esforço para dar dignidade a Maria Schneider, os cineastas mantêm distância dela, tornando a impossibilidade de a conhecer em totalidade num dos principais preceitos da fita.
Intelectualmente, aplaudimos a abordagem. Contudo, também deixa um pouco a desejar enquanto experiência dramática, não fosse a forte caracterização no âmago de tudo. Anamaria Vartolomei é a chave para os modestos sucessos de “Maria Schneider,” cumprindo a promessa estabelecida em trabalhos como “O Acontecimento” e “O Conde de Monte-Cristo.” Ela é, sem dúvida, uma das estrelas em ascensão do cinema francês, capaz de sustentar observações microscópicas, grandes planos constantes e inteiras sequências construídas em torno da sua expressão silenciosa. Até no florescer da paixão com outra mulher, Vartolomei dá dimensionalidade ao desejo, sugerindo a maturidade na vertigem do desespero.
Vê-la espelhar a evolução de Maria, esse idealismo menino que gradualmente morre e fossiliza, quebra e corrói, é um assombro tão visceral como os ultrajes que a outra atriz interpreta no filme de Bertolucci. De facto, em retrospetiva, “Maria Schneider” de Jessica Palud parece refletir sobre a indústria e seus contextos culturais, expondo os males e os vícios, num gesto otimista, meio esperançoso. É a vontade que mulheres como Vartolomei não venham a passar pelo mesmo que Maria Schneider. A arte não vale a destruição da pessoa, a dor, o crime. Dizer isso não é um ataque, mas uma convicção que todos devemos valorizar – em nome do cinema e das pessoas a que lhe dedicam as suas vidas.
Maria Schneider, a Crítica
Movie title: Maria
Date published: 16 de April de 2025
Duration: 100 min.
Director(s): Jessica Palud
Actor(s): Anamaria Vartolomei, Matt Dillon, Giuseppe Maggio, Céleste Brunnquell, Yvan Attal, Marie Gillain, Capucine Brunet, Anne Suarez
Genre: Drama, Biografia, 2024
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Cláudio Alves - 70
CONCLUSÃO:
“Maria Schneider” evita o sensacionalismo que o seu tema poderia sugerir, seguindo uma estratégia audiovisual onde o grande plano toma lugar de primazia e a reação sem diálogo diz mais que mil palavras. Anamaria Vartolomei faz muito para sustentar estas escolhas da realizadora Jessica Palud e, de forma geral, consegue fazer o projeto triunfar. Com ambição comedida e alergia à nostalgia, “Maria Schneider” é um objeto cinematográfico com valor político e intelectual. Enquanto experiência dramática, podia ser melhor.
O MELHOR: Vartolomei em estado de graça, quase tão extraordinário como foi em “O Acontecimento” de Audrey Diwan.
O PIOR: A estratégia audiovisual de Palud é um tanto ou quanto monótona. Quando se está a fazer um filme que inclui Bertolucci e suas metodologias como um tópico de apreciação moral e artística, estas insuficiências são meio debilitantes.