Monsieur Aznavour, a Crítica | Um grande filme biográfico e um belo cântico à vida
“Monsieur Aznavour” da dupla de realizadores Mehdi Idir e Grand Corps Malade é um ‘biopic’ que nos proporciona uma visão bastante concisa e muito interessante da vida do cantor francês Charles Aznavour, mas sobretudo da sua música e de como se transformou num mito da canção francesa no mundo.
Depois de Maria Callas, Edith Piaf, Elvis Presley, Django Reinhardt, ou outros grandes ídolos da música do século XX, já estava na altura de alguém se lembrar de transformar a vida do grande cantor francês Charles Aznavour (1924-2018), num filme biográfico. Neste caso num filme de doce entretenimento, bastante inspirador, divertido e musical. “Monsieur Aznavour” da dupla Mehdi Idir e Grand Corps Malade (nome artístico do músico Fabien Marsaud e já vamos falar dele mais à frente), é uma daquelas obras fundamentais, para a cultura musical de todos os espectadores, pois o ‘mestre’ Charles Aznavour é um dos nomes mais sonantes da história da música francesa do século XX.
Além disso, trata-se de uma história de superação pessoal e profissional, já que Aznavour, no início da sua carreira, era diminuindo, pois ouvia com frequência dos outros que era muito feio, muito baixinho e que não podia cantar. O artista tinha cerca 1,65 metro de altura e era apelidado de ‘Aznovoice’ pelos seus críticos — um jogo de palavras em inglês com ‘has no voice’ (‘não tem voz’) — e acabou graças à sua determinação, por vender mais de 180 milhões de discos em oito décadas de carreira.
- Tahir Rahim em palco e no filme é quase igual na gestualidade a Aznavour. ©Midas Filmes/Divulgação
Uma personalidade irrequieta
Charles Aznavour na verdade, compunha e cantava sobre a vida com sinceridade e um enorme carisma, algo que caracterizou a sua longa vida cheia de peripécias e altos e baixos, amores e desamores, momentos felizes e outros dramáticos, como a perda ainda jovem do seu filho Patrick, até, ao seu falecimento aparentemente feliz, aos 94 anos de idade. É precisamente nesta linha directa e despretensiosa que se desenvolve a narrativa deste “Monsieur Aznavour”, de Mehdi Idir e Grand Corps Malade, um filme fascinante tanto para quem não conhece o cantor, como para os admiradores da sua figura e da suas extraordinárias canções, que marcaram (e continuam a marcar) várias gerações.
Não surpreende por isso que o filme chegue agora às salas portuguesas, depois de ter feito mais de dois milhões de espectadores em França. Na sessão pública que assisti estava esgotada, embora com um público efetivamente mais idoso. Porém o filme é muito atual e vai decerto surpreender os espectadores mais jovens, primeiro pela música e depois quanto mais não seja pela personalidade irreverente e inquieta de Aznavour, desde jovem até ao final da sua vida.
Vê o Trailer de “Monsieur Aznavour”
Uma vida de trabalho e glória
Quanto ao filme, os realizadores, Mehdi Idir e Grand Corps Malade constroem “Monsieur Aznavour”, numa estrutura de cinco capítulos, em que a maior parte da extensa obra e vida do cantor-compositor, são mencionadas sem filtros e de uma forma ampla: as suas origens humildes, as suas conquistas e até o seu apoio — algo bastante avançado, para a época — à comunidade queer. Do começo ao seu fim grandioso, “Monsieur Aznavour” acompanhou o homem por toda a sua vida de trabalho e glória.
O seu pai ensinou-lhe desde pequeno: ‘Nunca te esqueças de onde vieste’. E Aznavour nem sempre faz isso. Mesmo quando abandona os seus amigos e familiares, para seguir a sua carreira e o seu sonho de chegar ao topo, como espectadores, não hesitamos em ficar ao lado dele; ou quando no belo plano final caminha por Nova Iorque — sozinho e já no topo da fama — ecoa em sua cabeça, uma melancólica melodia oriental, tocada num duduk, o instrumento nacional da Armênia.
A perseverança do cantor e compositor francês é também mostrada com insistência, sobretudo tendo em conta a difícil ascensão desse filho de imigrantes arménios: ‘Para cantar é preciso ter uma voz pura’, dizia Edith Piaf (interpretada no filme por Marie-Julie Baup), ‘e a sua é impura quase como uma cana-rachada’. Ao fazer isso, Piaf pensava acabar com a perspectiva de Aznavour de fazer uma carreira solo. Mas o cantor, rompeu com ‘La Môme’ e jurou que não mais iria parar até ter o mesmo salário que Frank Sinatra.
- A sorte de Aznavour foi chamar a atenção de Edith Piaf. ©Midas Filmes/Divulgação
Tahar Rahim canta e encanta
Tahar Rahim (“Napoleão”) é fabuloso na sua interpretação de Aznavour — é talvez ele a ‘pedra basilar’ deste belo filme biográfico — demonstrando quase sempre um carisma simples e quase infantil, exatamente como na realidade se comportava o cantor, que curiosamente se apresentou duas vezes em Portugal, em 2008 e 2016. Vemos Tahar Rahim imitar o ícone de forma bastante crível e realista nos palcos do mundo inteiro. Com as mãos nos bolsos, tal como Monsieur Aznavour, Rahim caminha em frente à plateia, encolhendo os ombros e mexendo as mãos ou com o lenço branco, encantando os espectadores — quase como se estivéssemos num espetáculo ao vivo — com os seus sorrisos e piscadelas de olho de bom malandro.
- Aznavour dizia: ‘Se parar, eu morro’ e por isso nunca parou de cantar. ©Midas Filmes/Divulgação
Um espetáculo biográfico e musical
O resultado do filme, é um espetáculo musical tão incansável quanto Charles Aznavour, em que se sai com vontade de ouvir logo de novo as suas músicas. Mesmo quando seu repertório já estava abarrotado de letras de músicas de sucesso, Aznavour dizia: ‘Se parar, eu morro’. Em palco, quando fazia as primeiras partes dos concertos, Aznavour, anunciava a sua parceira Edith Piaf como: ‘Un nom, et dans ce nom, toute la chanson’ (‘Um nome, e nesse nome, toda a canção’), mas na verdade essa mesma frase poderia aplicar-se a si próprio. “Monsieur Aznavour” é efectivamente uma das poucas alegrias nas salas de cinema nacionais, neste período de quase ‘limbo’ de estreias de qualidade, até que chegue a nova temporada de verão.
A modernidade de Aznavour
Para terminar, confirmando ainda a contemporaneidade de Charles Aznavour, o co-realizador Grand Corps Malade, (que é na realidade o músico Fabien Marsaud) trabalha regularmente numa forma de arte bastante original: a poesia slam e sobretudo na música electrónica. É curioso, que criou um single, que lançou ao mesmo tempo que o filme, “Monsieur Aznavour”, onde o músico usa samples do cantor, alternado com seu próprio estilo musical e o resultado é um tema, que fica entre o rap e a palavra falada. Vale a pena escutar!
- Da pobreza à fama, a história de um mito. ©Midas Filmes Divulgação
Charles Aznavour, um mito da canção mundial
Nasceu a 22 de maio de 1924, em Paris, no seio de uma família de imigrantes arménios, que fugiram das perseguições (massacre) dos turcos a esse povo desde 1915. Reza a lenda que, ao nascer, a parteira não conseguiu pronunciar o nome que seus pais queriam lhe dar: Shahnourh . Por isso, ficou Charles, um nome mais afrancesado. Porém, Aznavour, sempre reivindicou com orgulho as suas raízes armênias, que de facto condimentam com um toque de melancolia, até a mais alegre das suas canções. A sua infância decorreu, imersa na boémia de músicos e atores em Paris, colegas dos seus pais. Aos 9 anos, ensaiava sozinho na frente do espelho e decidiu mudar o sobrenome paterno Aznavourian pelo artístico Aznavour.
Um homem carregado de sorte
A sorte sorriu-lhe pela primeira vez em 1946, quando chamou quase por acaso a atenção de Edith Piaf. Junto com o seu grande amigo, o pianista Pierre Roche, Piaf levou-os no ano seguinte para uma turnê pelos EUA. Nos anos 1950, Aznavour, já escrevia canções para Gilbert Bécaud, mas, junto com o sucesso, vieram também as primeiras e ferozes críticas às suas interpretações: ‘Quais eram as minhas desvantagens? A minha voz, a minha estatura, os meus gestos, a minha falta de cultura e de instrução’, admitiu o cantor, aliás num dos momentos marcantes do filme. No entanto, Aznavour manteve a sua forte determinação, e todas essas desvantagens acabaram sendo a sua marca inconfundível e uma das chaves de seu enorme sucesso, em quase oito décadas de carreira.
O ‘Frank Sinatra francês’, de origem armênia, orgulhava-se inclusive de ter gravado desde os pesados discos de 78 rotações até os CD, passando pelos LP de vinil, que imortalizaram mais de 800 canções compostas por ele próprio, incluindo pelo menos 70 em espanhol. A glória mundial chegou nos anos 1960, com alguns de seus grandes sucessos: “Les comédiens”, “Hier encore” e “Il faut savoir”.
- O filme ajuda-nos a recordar canções inesquecíveis. ©Midas Filmes/Divulgação.
Uma figura multifacetada
Nessa época, Monsieur Aznavour, conquistou o Carnegie Hall de Nova Iorque, antes de uma turnê mundial que o catapultou para a fama com canções como “La mamma”, retomada por outros grandes nomes da música como Ray Charles, Liza Minnelli, ou Fred Astaire. Envolveu-se ainda com tema polémicos para a época, como o da homossexualidade, interpretando sem preconceitos, o famoso tema “Comme ils disent” (1972).
Aznavour também trabalhou no cinema e teve uma longa e variada carreira paralela como ator, aparecendo em mais de 60 filmes, como por exemplo em “Atirem no pianista” (1960), de François Truffaut, no papel do personagem Edouard Saroyan, e em “E não sobrou nenhum” (1974), inspirado num romance de Agatha Christie, e teve ainda um importante papel como actor secundário em “O Tambor”, (1979), de Volker Schlöndorff, Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, em 1980. Em 2002 foi o protagonista do filme “Ararat”, interpretando Edward Saroyan, um alter-ego do cineasta canadiano Atom Egoyan, também de origem arménia e num filme precisamente sobre o genocídio dos arménios em 1915.
- Aznavour foi considerado para muitos o ‘Frank Sinatra francês’. ©Midas Filmes/Divulgação
Um cantor-compositor popular
‘Se algo de mim ou do meu trabalho deve perdurar, os meus discos serão amplamente suficientes’, escreveu Aznavour no seu livro autobiográfico “D’une porte l’autre”, publicado em 2011. Nessa altura, as suas apresentações no mundo inteiro continuavam a reunir milhares e milhares de admiradores incondicionais, que aplaudiam seus grandes sucessos melódicos, quase todos sobre o amor, ou sobre a passagem do tempo. Assim como o cantor e seu amigo Charles Trenet (1913-2001), a popularidade de Aznavour transcende idades e classes sociais, cantou para papas, reis e presidentes, ainda que sem chegar verdadeiramente ao firmamento literário e interventivo de cantores-compositores como George Brassens, Leo Ferré, ou Jacques Brel.
O grande artista do século XX
Aznavour foi, antes de tudo, uma espécie de embaixador da canção popular francesa no mundo e, nesse papel, cantava com enorme facilidade em qualquer idioma: espanhol, italiano, alemão, inglês ou mesmo russo. Em 1998, a cadeia de televisão americana CNN e a revista Time coroaram-no como o ‘artista do século’. Quando a idade começou a impor-lhe limites para aparecer em palco, Aznavour mesmo assim não se deu por vencido: usava um banquinho alto e ajudava sua memória com um ponto eletrónico.
- a cantora Edith Piaf é interpretada por Marie-Julie Baup. ©Midas Filmes/Divulgação
O embaixador da música francesa
Em 1998, Monsieur Aznavour liderou os esforços humanitários para ajudar milhares de vítimas do terremoto que devastou a Armênia e, durante anos, militou a favor do reconhecimento do genocídio armênio por parte dos turcos. Aznavour morou em Genebra durante muitos anos. Foi lá, que encontrou também um refúgio fiscal — ’teve à perna’ com fisco, em França e foi mesmo a julgamento por fuga aos impostos — e chegou a ser embaixador da Arménia, território que também representou na sede europeia da ONU. Charles Aznavour, morreu em Mouriés, França no dia 1 de Outubro de 2018, aos 94 anos, mas muito antes já tinha conquistado a fama mundial com suas nostálgicas melodias, e foi de fato, o último gigante da música francesa do século XX.
"Monsieur Aznavour", a crítica | Um grande filme biográfico e um belo cântico à vida
Movie title: Monsieur Aznavour
Movie description: Este é um filme que nos faz descobrir o percurso excepcional e intemporal de Charles Aznavour e das suas canções inesquecíveis. Filho de refugiados arménios, pequeno, pobre, nada parecia indicar que pudesse conquistar o sucesso. Mas com trabalho e uma perseverança incomum, Charles Aznavour tornou-se um monumento da canção, um símbolo da cultura francesa. Com centenas de canções, interpretadas em várias línguas, concertos no mundo inteiro, inspirou músicos de todas as gerações.
Date published: 26 de March de 2025
Country: França, 2024
Duration: 173 minutos
Director(s): Mehdi Idir, Grand Corps Malade
Actor(s): Marie-Julie Baup, Tahar Rahim, Bastien Bouillon, Soufiane Guerrab, Rupert Wynne-James, Tiffany Hofstetter, Lionel Cecilio, Tiger Mekhitarian
Genre: Musical, Biografia
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José Vieira Mendes - 75
Conclusão:
“Monsieur Aznavour”, da dupla Mehdi Idir e Grand Corps Malade, com um enorme Tahar Rahim como protagonista, é um filme bastante convencional que à partida, não nos traz nada de novo em relação a qualquer outra obra do género biográfico. Porém, aqui tudo é executado de uma forma inteligente e ponderada do ponto de vista da realização: os saltos temporais são intercalados com montagens, que repetidamente fornecem um pulso narrativo renovado e crível, à história de vida da grande lenda da canção francesa. Há drama, há diversão e, acima de tudo, há muito amor pela música. O filme oferece-nos, portanto, uma visão geral divertida do homem, da sua música e do seu legado.
Pros
O melhor: Sem dúvida o ator Tahar Rahim que é verdadeiramente extraordinário e credível na sua encarnação de Charles Aznavour, embora as semelhanças físicas, não sejam assim tão grandes. E depois obviamente as inesquecíveis canções do ‘mestre’.
Cons
O pior: É um biopic bastante convencional, narrado em capítulos que não nos traz nada de novo ao género, mas tudo é feito com inteligência e à procura de agradar ao espectador comum, que quer ou recordar ou conhecer a vida e a obra desse mito da ‘chanson française’.