MONSTRA ’24 | Competição Portuguesa, a crítica: Estúdios de cinema de animação nacionais em destaque
Em 2024, a MONSTRA voltou a apresentar no seu último fim de semana a grande mostra da animação nacional com a Competição Portuguesa pelo Prémio SPA – Vasco Granja. Ao todo, 11 curtas ecléticas projetaram-se perante o público numa sala Manoel de Oliveira repleta e com muitos realizadores e realizadoras na conversa.
Com direito a sessão de perguntas e respostas geral a fechar, e com a presença em palco (em peso) dos realizadores e realizadoras dos vários trabalhos, qualquer organização de festival se deve orgulhar do painel que se compôs na Sala Manoel de Oliveira do história Cinema São Jorge na sexta-feira, 15 de março. Ano após ano, a Competição Portuguesa da MONSTRA é capaz de ilustrar o que de melhor se faz nos estúdios de animação à escala nacional. E se o nosso mercado é pequeno e é sabido que produz (muito) poucas longas, o trabalho no campo da curta fala por si. Prova disso é esta sessão competitiva patrocinada pela Sociedade Portuguesa de Autores e que homenageia a carreira de Vasco Granja, importante vulto na apresentação do cinema animado em Portugal.
Já com os resultados revelados na cerimónia de encerramento, passamos revista às obras selecionadas para a Competição Vasco Granja nesta 23.ª edição da MONSTRA!
PÁSCOA (ANDRÉ RUIVO, 2023, PORTUGAL, 11′)
Num registo autobiográfico, baseado em factos reais, seguimos estrada fora com a família Ruivo até Castelo de Vide, palco da famosa chocalhada nocturna, na Páscoa. Mas nem tudo corre como o esperado. Ou talvez sim…
A sessão da Competição Portuguesa da MONSTRA em 2024 viu-se inaugurada pela mais recente curta-metragem animada da autoria de André Ruivo (” Campo à Beira Mar”), também conhecido através do seu trabalho na ilustração.
“Páscoa” é um filme simples, tanto nas suas aspirações estéticas quanto narrativas. Todavia, é valoroso, divertido, bem ritmado e pertinente. Escrito por André Ruivo e Ana Ruivo, o argumento recorda memórias familiares da infância e retrata uma “portugalidade” muito distinta. A tradição de um núcleo familiar e as suas pequenas idiossincrasias são rememoradas com carinho e cuidado.
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Na cerimónia de encerramento, “Páscoa” foi reconhecido com a Menção Honrosa nesta Competição Vasco Granja. Assinalamos o mérito particular do trabalho de som por João Penedo. A “chocalhada”, ritual que traz uma certa dimensão pagã inesperada à fastidiosa celebração da Páscoa, dá alegria ao filme e a sua paisagem sonora torna-se bastante característica.
Classificação: 70/100
SOMBRAS DA MANHÃ (RITA CRUCHINHO NEVES, 2023, PORTUGAL, 12′)
Morning Shadows [Trailer] from Portugal Film on Vimeo.
“Passo a minha vida sentado, como um anjo nas mãos de um barbeiro.” – Rimbaud. Considere-se a associação sugerida por uma barbearia, entre uma lâmina de barbear e uma caneta, o pincel de um pintor e um barbeiro, água, sangue e tinta. A maneira como o personagem principal vivencia coisas elementares. A luz que viaja pelo espaço habita o corpo, seus gestos, sensações e movimento. As imagens – neste diário de coisas perdidas – representam a perda e a cicatrização de feridas. Sombras da Manhã conta a história de uma vida única na sua jornada circular, sob a luz de um sol negro que clareia.
“Sombras da Manhã” é quiçá a mais poética entre as obras exibidas nesta Competição Portuguesa da MONSTRA ’24. O trabalho, escrito por Pedro Castro Neves, realizado por Rita Cruchinho Neves e com distribuição a cargo da Portugal Film – Portuguese Film Agency afirma-se como um exercício forte de reflexão. Uma mera ida ao barbeiro lança o mote para uma cadência de pensamentos que se caracteriza pela sucessão de ideias díspares. Tal qual como funciona a mente humana, conforme confirmado por Rita Cruchinho Neves em conversa com Fernando Galrito após a projeção.
Abstrato e livre, o filme chegou à MONSTRA depois de já ter passado por palcos como o IndieLisboa – International Film Festival (estreia mundial) ou Caminhos do Cinema Português. Esta obra reflete sobre luz e sombras e distingue-se através das belas texturas, competência técnica e significação ampla.
Classificação: 65/100
O CONTO DA RAPOSA (ALEXANDRA ALLEN, 2022, PORTUGAL, 6′)
Uma raposa esfomeada disputa o último bago no topo da árvore.
“O Conto da Raposa”, ou “Foxtale”, da autoria de Alexandra Allen assinala o momento MONSTRINHA nesta Competição Vasco Granja. Uma obra para os mais novos bem acolhida nas respectivas sessões, “O Conto da Raposa” traz consigo uma tradicional e bem intencionada mensagem acerca de partilha. Promove ainda a inversão de estereótipos e mune-se da capacidade (não desprezável, de certo) de fazer rir pequenos e graúdos.
A animação digital e cores muito saturadas são perfeitas para os mais novos, assim como a sumária extensão desta curta-metragem afável.
Classificação: 65/100
A RAPARIGA DE OLHOS GRANDES E O RAPAZ DE PERNAS COMPRIDAS ( MARIA HESPANHOL, 2023, PORTUGAL, 11′)
Esta é uma história de amor cheia de encontros e desencontros, na qual reside uma presença constante de uma busca incessante pelos relacionamentos de felicidade e autoestima entre os dois personagens.
Com um título tão longo e “Tim Burtiano”, não restaria margem para dúvida: “A Rapariga de Olhos Grandes e o Rapaz de Pernas Compridas” afirmar-se-ia como um dos títulos mais espirituosos e invulgares desta competição. Ora, a curta de Maria Hespanhol não desilude. São apenas onze minutos, mas estes onze valem por tantos mais. É palpável o laborioso esforço de trazer estas duas personagens “à vida”. Os cenários são meticulosos, detalhados, coloridos, maravilhosamente rococó.
Não lhes fica nada atrás a criação do mundo ou o desenho das personagens, edificados através da belíssima e exigente arte das marionetas que, por razões evidentes, não vemos tão frequentemente quanto isso no reino da animação. Do ponto de vista temático, “A Rapariga de Olhos Grandes e o Rapaz de Pernas Compridas” pode até não desenvolver por aí além o seu argumento, mas sabe criar uma história sobre desencontros, oportunidades e pequenos instantes determinantes. Acima de tudo, Maria Hespanhol e a sua equipa são hábeis a criar impacto, apresentar um exímio estilo e recordar-nos do ‘problema de expressão’ que não raras vezes dita o embaraço nas relações humanas.
Classificação: 80/100
OLHA (NUNO AMORIM, 2023, PORTUGAL, 11′)
No processo de criação do argumento de um filme, dois argumentistas conjuram alguns dos seus fantasmas passados, presentes ou futuros, projetando as suas indecisões e diferenças na jornada dos personagens fictícios, possivelmente seus alter egos.
De Nuno Amorim, importante vulto e co-fundador do estúdio de animação nacional Animais avpl, chega-nos uma obra de meta cinema com a qual o realizador se propôs, como comunicado a Fernando Galrito no final desta sessão na MONSTRA, a explicar a arte de animar (a si próprio e não necessariamente ao público). E embora Amorim defenda não ter conseguido cumprir este objetivo, a genuína verdade é que “Olha” é eficaz na sua capacidade de criar um discurso coerente e fluído entre aquele que é o argumento original da curta e a discussão sobre o mesmo.
Diz-se do cinema que é das mais colaborativas das artes, e sem dúvida tal afirmação quase dispensa explicação. Ora, a animação, como género cinematográfico, e sendo uma manifestação artística morosa e exigente, assume-se como exemplo fulcral. Nuno Amorim, Vanessa Ventura e a equipa da Animais conseguem colocar em evidência a tensão que surge a partir do esforço de criação. Fazem-no recorrendo a um estilo de animação com poucas amarras, suscitando ainda mais a curiosidade.
Classificação: 70/100
A RAPARIGA QUE CAMINHAVA SOBRE A NEVE (BRUNO CARNIDE, 2024, PORTUGAL/ESPANHA, 4′)
Num lugar distante, a mais triste das raparigas carrega dentro de si uma escuridão temida por todos. Com medo de que a sua melancolia contamine tudo ao seu redor, ela só ousa aventurar-se ao exterior quando neva, confiante de que o manto branco de pureza irá camuflar a sua tristeza.
Embora tenha beneficiado de uma equipa de produção com os vários departamentos necessários, “A Rapariga Que Caminhava Sobre A Neve” apresenta-se como uma invulgar experiência no reino da animação. Embora não nos tenhamos apercebido inicialmente, esta pequena curta atmosférica, gótica e pesada foi criada recorrendo à utilização de inteligência artificial.
Desta forma, vemos este pequeno filme estreado na MONSTRA mais como um exercício. Uma tentativa, uma experiência que nos diz que a linha que nos separa do conteúdo criado por algoritmos está cada vez mais ténue. Diz-nos (ou antes, reforça) que a IA irá, de certo, revolucionar a forma como nos relacionamos com o mundo, com o trabalho e até com a arte. A provocação está lançada, mas será que “A Rapariga Que Caminhava Sobre A Neve”, de Bruno Carnide, se sustenta como obra de cinema? Para nossa surpresa, as imagens geradas e mais tarde trabalhadas pela equipa foram capazes de nos mergulhar no seu universo negro (num esforço conjunto entre humano e algoritmo). Se é esta obra mais genérica do que outras geradas pela mente humana e exibidas nesta sessão? Felizmente, sim.
Classificação: 60/100
SOPA FRIA (MARTA MONTEIRO, 2023, PORTUGAL/ FRANÇA, 10′)
Uma mulher, vítima de violência doméstica, recorda os anos em que esteve casada e como foi difícil manter-se à tona.
Dez tensos minutos, 1o minutos plenos de significado. Uma história simples que tem tanto de particular como de específico e que tanto nos diz sobre a sociedade portuguesa e seus valores.
“Sopa Fria”, vencedora do Prémio Especial do Júri (patrocínio HBO Max) e ainda do Prémio do Público na Competição Portuguesa da MONSTRA em 2024, é uma das obras que mais se destaca entre a seleção de curtas em competição na presente edição do Festival de Animação de Lisboa.
Tendo por base a banda desenhada “Sopa”, da autoria de Joana Estrela, a argumentista e realizadora Marta Monteiro cria uma hipnotizante manta de retalhos que se compõe de memórias de uma relação abusiva. A imagem constrói-se a partir de fragmentos de animação, de fotografias, recortes, de linhas animadas expressivas que sabem representar o sentimento de reclusão e isolamento com particular habilidade.
A obra, produzida pela portuguesa ANIMAIS AVPL e pela francesa La Clairière Ouest, e com distribuição assegurada pela AGENCIA – Portuguese Short Film Agency, opta por uma representação minimalista e por uma invulgar palete de tons verdes e vermelhos suaves. As opções estilísticas são compensadas em pleno, da narração expressiva à inclusão de pormenores íntimos que tornam esta história mais palpável e devastadora. Do inicial salto da protagonista para fora do enquadramento, ao encolher progressivo do seu espaço doméstico, passando ainda pela imersão na água do chá, vários planos ousados ficarão na memória de quem descobriu esta “Sopa Fria”.
Classificação: 85/100
MOTUS (NELSON FERNANDES, PORTUGAL, 2023, 4′)
Motus: um corpo em movimento. Uma animação stop-motion onde concepção, degradação e regeneração coabitam de maneira única. Uma criação numa chapa de metal usando etanol como matéria-prima.
Nelson Fernandes é responsável pela realização, argumento, produção, animação, som (ao lado de Felipe Santareno) e distribuição de “Motus”. O pequeno “one man show” recupera o mesmo estilo particular que o realizador havia já utilizado com o seu “Us”, em 2021. Uma vez mais, a curiosidade e experimentação técnica lideram neste esforço cinematográfico. A maleabilidade da animação é assim (novamente) colocada em destaque.
A arte da animação experimental sempre teve expressão na MONSTRA, e encontra em “Motus” a sua representação em 2024 e na Competição Portuguesa – uma obra simples mas apelativa.
Classificação: 60/100
O ESTADO DE ALMA (SARA NAVES, 2024, PORTUGAL/ESPANHA, 12′)
Alma acorda todos os dias com uma nova condição, sofrendo as mais variadas transformações físicas que refletem os seus sentimentos de inadequação e a impedem de seguir uma rotina diária normal. A cada dia que passa, Alma sente-se gradualmente mais só e afastada de todos.
Começando pela animação apelativa e passando pela metáfora poderosa acerca de estados de espírito, “O Estado de Alma” é delicioso. Escrito, realizado e co-animado por Sara Naves em colaboração com a Sardinha em Lata, reconhecemos nesta obra uma poderosa intenção (cumprida) no sentido de materializar a ansiedade e mágoa que muitas vezes se limita a fervilhar, solitária, dentro de cada uma das nossas “almas”.
A protagonista encontra-se mergulhada num profundo ennui, é certo. mas não é por isso que “O Estado de Alma” é uma obra derrotista ou melodramática. É antes um hino à natureza transitória das piores ânsias do espírito e uma corajosa representação visual da interioridade. É também a canção dos inadaptados, que no fim acabamos por ser cada um de nós.
Com todo o mérito, “O Estado de Alma” venceu o Prémio Especial do Júri na MONSTRA 2024 (e consequentemente a disponibilização na plataforma HBO Max).
Classificação: 90/100
QUASE ME LEMBRO (DIMITRI MIHAJLOVIC, MIGUEL LIMA, 2023, PORTUGAL, 9′)
Uma mulher deambula por entre a impermanência das suas memórias de infância, tentando reconstruir a história da casa onde viveu o seu avô.
“Quase Me Lembro”, com produção BAP – Animation Studio – David Doutel, Vasco Sá (longe de estranhos na programação da MONSTRA em anos passado), é “mais” uma obra portuguesa assombrada pelo fantasma da memória colonial. A memória que coletivamente as gerações já nascidas no pós 25 de Abril tentam com muita dificuldade trazer à tona. Uma memória que se torna esquiva e que os sobreviventes, do ultramar aos retornados, procuram tornar mero vestígio incompreensível.
O filme de Dimitri Mihajlovic e Miguel Lima, co-escrito ainda por Pedro Bastos, tenta preencher esses mesmos espaços de memória que insistem em se escapulir. E embora esta obra fique abaixo dos 10 minutos, um estilo distintivo e a presença de diversos símbolos fortes, bem como um incontornável crescendo, tornam quase me lembro num exercício fantasiado de memória imperdível. Na 23.ª edição da MONSTRA, mereceu aos seus realizadores o grande Prémio Vasco Granja (SPA).
Classificação: 85/100
DE IMPERIO (ALESSANDRO NOVELLI, PORTUGAL/ESPANHA, 2023, 13′)
Durante uma noite tranquila, um grupo de fugitivos tenta encontrar o caminho para o centro do edifício, onde toda a resistência se está a juntar. Evitando a vigilância, eles passam pelas salas dos Gigantes e testemunham as suas rotinas macabras.
A sessão terminou com “De Imperio”, um filme que havíamos já descoberto na sessão de TerrorAnim e que inclusive já tínhamos tido a oportunidade de ver em 2023, na altura em que saiu premiada do MOTELx. Esta é mais uma proposta da BAP – Animation Studio, em colaboração com o Studio Kimchi . O enigmático projeto assinado por Novelli foi defendido pelo realizador em sala e assim se tornou um pouco mais concreto.
O realizador enquadrou esta obra como uma definida em torno de dinâmicas de poder, perante as quais tão depressa podemos ser o “monstro” ou a pequena peça que este atormenta. Perante um clima de relações internacionais tenso como o atual, filmes como “De Imperio” servem funções artísticas muito além do estético e assim celebramos , por isso, a sua inclusão nesta competição portuguesa.
Classificação: 80/100
Em 2024, O Festival de Animação de Lisboa marcou presença na capital entre 7 e 17 de março e cá estivemos para acompanhar a programação. Se este ano a Irlanda foi o País Convidado, em 2025 será a vez da Áustria. A bela ilustração do cartaz, pelos vultos Abi Feijó e Regina Pessoa, foi já revelada.
MONSTRA 2024 | AMBIENTE DO FESTIVAL DE ANIMAÇÃO DE LISBOA
Marcaste presença nesta mais recente edição da MONSTRA – Festival de Animação de Lisboa, que aconteceu entre 7 e 17 de março de 2024?