A Morte de Estaline, em análise
A 3 de março de 1953, Joseph Estaline foi encontrado no seu escritório inconsciente, a sofrer as consequências de uma cataclísmica hemorragia cerebral. Três dias depois, morreu. Agora, passados mais de 65 anos, “A Morte de Estaline”, o mais recente triunfo de Armando Iannucci, traz esses eventos históricos para o grande ecrã, mas, longe de uma representação respeitosa do facto histórico, esta é uma insana sátira política e um dos filmes mais hilariantes do ano.
Há comédias negras e há “A Morte de Estaline”. Tal afirmação parece um pouco inócua, especialmente considerando que existem comediantes a utilizar temas como o Holocausto para piadas. No entanto, a nova obra de Armando Ianucci não se trata de um sketch solitário numa coleção de outras bizarrias à la Mel Brooks, nem de uma sessão de stand up, mas sim uma narrativa que, nas mãos de outro cineasta, poderia facilmente ser um drama histórico completamente sério. Afinal, muito do humor de “A Morte de Estaline” tem base nas mais sórdidas atrocidades de um regime onde as figuras de poder podiam ordenar a morte dos seus inimigos de modo quase indiscriminado. É também um filme mainstream com considerável prestígio, vencedor de vários prémios e com um elenco internacional de luxo. Em suma, é uma conflagração de características rara, ou mesmo inédita, e por isso merece respeito.
O melhor de tudo é que o valor de “A Morte de Estaline” não se contém somente na sua audácia, sendo esta uma das melhores e mais hilariantes comédias cinematográficas dos últimos anos. É claro, contudo, que seria fácil entender por que razão um espectador desinformado pudesse duvidar que estava diante de uma comédia quando o filme começa. Pela primeira vez na sua carreira, parece que Armando Ianucci decidiu investir alguma da sua atenção a assuntos de forma e estilo, dando ao seu novo projeto a pátina respeitosa e fausto técnico de um drama histórico. Isso manifesta-se num começo da narrativa que não demonstra quaisquer marcas tradicionais de uma comédia, até que o humor satírico começa a denotar-se, de modo orgânico, no meio da reconstituição histórica.
“A Morte de Estaline” começa com um luminoso concerto de composições de Mozart enquanto, longe do populus, os líderes da nação ouvem as melodias pela rádio. Sem nenhum aviso, um pedido de Estaline chega aos ouvidos do homem encarregue da transmissão rádio. Parece que ele deseja uma cópia pessoal da gravação do concerto, mas não há gravação desta transmissão em direto pelo que, aterrorizados pelas consequências do seu hipotético fracasso em concretizar os desejos do líder, os técnicos da rádio organizam uma apressada repetição do concerto. Ao mesmo tempo que isto sucede, os grandes figurões do comité central do partido comunista jantam com Estaline, no que parece ser um jogo de conversa casual com consequências mortíferas. Aqui, uma piada mal-encarada pode ser a diferença entre a sobrevivência e a execução.
Tudo isso é somente um prólogo em que Iannucci e companhia limitada estabelecem os parâmetros do seu exercício humorístico, em que os horrores da História andam de mãos dadas com o tipo de endiabrada sátira política que trouxe fama ao criador de “The Thick of It” e “Veep”. O real enredo do filme tem início na manhã seguinte, quando o corpo inconsciente de Estaline é encontrado numa poça da sua própria urina, o que leva as principais figuras da liderança soviética a andarem em círculos como baratas tontas a engendrar uma série de esquemas e conspirações tanto para assegurarem a sua vida como para encherem eles mesmos o vácuo de poder. Não há nada que enganar, todas as personagens em cena são monstruosas pessoas capazes de autorizar, ordenar e perpetrar crimes contra a Humanidade que a imaginação do homem comum nem consegue entender, mas, nesta narrativa insólita, estes são também os nossos protagonistas e da sua mesquinhez e idiotice devém muito do humor.
Para edificar as teias de interesses e manipulações em convoluta ação de “A Morte de Estaline”, Iannucci baseou-se numa banda-desenhada de Fabien Nury e Thierry Robin, condensando cerca de dois anos de tumultuosas mudanças políticas no espaço narrativo de uma semana. Mesmo assim, talvez a sua maior manipulação seja o posicionamento de Lavrenti Beria como o grande antagonista do filme, enquanto Nikita Khrushchev é quase um anti-herói. É claro que acusar este filme de ser desrespeitosamente revisionista é o mesmo que dizer isso de “Sacanas Sem Lei” de Tarantino, uma futilidade absurda que não impediu os governos da Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão e Quirguistão de banirem a obra em questão.
O que toda esta moldagem dramática da História acaba por produzir é um filme que desenrola o seu enredo a um ritmo alucinante, sem sacrificar timing cómico ao mesmo tempo que conjura uma sensação ominosa de caos controlado. Evidentemente, tal triunfo não se deve somente aos esforços de Iannucci, ou mesmo ao trabalho coletivo dos outros argumentistas e da montagem genial de Peter Lambert, sendo que, como sempre acontece com os trabalhos desta equipa criativa, é no elenco que o projeto ora sucede ou fracassa. Felizmente, este é, como já dissemos, um elenco de luxo, cheio de atores consagrados, incluindo alguns nomes raramente associados com o estilo de comédia satírica em evidência em “A Morte de Estaline”.
Como o sanguinário Beria, Simon Russell Beale é o exemplo mais flagrante, sendo o ator principalmente famoso pela sua glória Shakespereana nos palcos britânicos. Aqui, Beale torna a sua figura histórica numa explosão contida de maldade antropomorfizada, telegrafando tão bem o poder ameaçador de Beria como a sua patética pequenez de espírito. Andrea Riseborough é outra atriz cujos esforços cómicos são raros, pelo que a sua prestação como Svetlana, a filha de Estaline, é uma deliciosa surpresa, conjugando em si os epítetos mais dramáticos do filme, sem nunca abdicar do humor. É a habilidade destes dois atores, juntamente com o balanço tonal de Steve Buscemi no papel de Khrushchev, que faz do final climático do filme um improvável sucesso.
Nos derradeiros dez minutos de “A Morte de Estaline”, Iannucci parece esquecer-se que isto é uma comédia e deixa que os horrores da sua premissa tomem controle da narrativa e é um milagre que tal reviravolta tonal não se assuma como uma enorme incongruência. O facto é que, ao nunca esconder a desumanidade da União Soviética dos anos 50 ou deixar que o seu elenco saia de um registo naturalista, o cineasta também nunca fecha a porta à possível apresentação visceral dos crimes desse mesmo sistema. Tal alquimia “tragicómica” é a final coup de grâce deste mortífero bacanal em malevolência cómica, em que Iannucci mais uma vez nos relembra das verdades humorísticas que se têm vindo a tornar nas ideias basilares do seu trabalho. A política é um jogo de vida ou morte e os seus jogadores são sempre alguns dos maiores desperdícios de oxigénio a chamar-se a si mesmos humanos. O que “A Morte de Estaline” acrescenta a isto é uma absurda coleção de idiotas particularmente imbecil e poderosa, sem quaisquer escrúpulos no que diz respeito a fazer perdurar um regime venenoso onde a vida humana parece ter sido completamente despida de valor.
A Morte de Estaline, em análise
Movie title: The Death of Stalin
Date published: 26 de April de 2018
Director(s): Armando Iannucci
Actor(s): Steve Buscemi, Simon Russell Beale, Jeffrey Tambor, Michael Palin, Andrea Riseborough, Rupert Friend, Jason Isaacs, Paddy Considine, Olga Kurylenko, Adrian McLoughlin, Dermot Crowley, Paul Whitehouse, Paul Chahidi, Diana Quick, Gerald Lepkowski
Genre: Comédia, 2017, 107 min
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Cláudio Alves - 90
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Maria João Sá - 80
CONCLUSÃO
Armando Iannucci volta a firmar-se como uma das mais geniais vozes cómicas da contemporaneidade, trazendo humor improvável ao caos político e sanguinária desumanidade da união Soviética dos anos 50. Um elenco insuperável, montagem diabolicamente eficiente e boas doses de inesperado fausto visual, fazem do filme uma experiência cinematográfica imperdível.
O MELHOR: O trabalho coletivo do elenco. Simon Russell Beale, Andrea Riseborough, Steve Buscemi, Rupert Friend e Jason Isaacs, em particular, dão aqui alguns dos melhores desempenhos das suas respetivas carreiras.
O PIOR: É difícil criticar alguém que se sinta ligeiramente ofendido pelo modo como o filme constrói humor com base em horrores históricos de proporções monstruosas.
CA
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Inteligente e negríssima comédia
A comédia mais hilariante que vi nos últimos anos.
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