MOTELx ’18 | Luz, em análise
“Luz” parece um filme perdido dos anos 80 com suas imagens cheias de grão e uma banda-sonora retro, mas o modo como conta a sua história de possessão pouco ou nada tem que ver com os clássicos de terror dessa época. Esta primeira longa-metragem do alemão Tilman Singer é um dos melhores filmes na competição de longas-metragens do 12º MOTELx.
Nos últimos anos, filmes e séries que copiam estéticas dos anos 80, especialmente no que se refere ao cinema de terror, têm vindo a dominar a nossa cultura popular. Tal inebriação nostálgica nem sempre se predispõe a exatas reproduções de técnicas e mecanismos cinematográficos de outros tempos, preferindo uma abordagem mais superficial, onde toques de modernidade impedem os projetos de serem exercícios em arqueologia audiovisual. Neste panorama, “Luz” é um dos exemplos mais bizarros. Por um lado, trata-se de um filme de terror tão bem composto ao estilo do cinema dessa época que poderia convencer muitas pessoas de que se trata de uma obra redescoberta de há 30 anos. Contudo, este é um exercício em estilos retro que, tonal e narrativamente, pouco tem que ver com os filmes de terror dos anos 80, a não ser que Tarkovsky tenha assinado algum pesadelo de série B sem ninguém saber.
A história que serve de esqueleto narrativo de “Luz” é ilusoriamente simples. Na Alemanha, Luz, uma jovem taxista de origem chilena, chega ferida, a meio de uma noite chuvosa, à esquadra da polícia. Aí, ela é interrogada sem efeito, pelo que as autoridades chamam um psiquiatra. Ao mesmo tempo, num bar próximo, o psiquiatra da polícia encontra-se com uma misteriosa mulher que lhe conta a história do seu encontro com uma antiga colega de colégio chamada Luz. Nora, pois esse é o seu nome, leva o psiquiatra até à casa-de-banho e lá passa-lhe uma presença sobrenatural que apenas usava o corpo da mulher como veículo. Quando é chamado à esquadra, a entidade espiritual dentro do corpo do psiquiatra tem finalmente oportunidade de encurralar e possuir o seu alvo final, Luz, levando-a, através da hipnose, a uma viagem pelo seu passado, incluindo os primeiros encontros com o demónio.
Em suma, o filme é uma espécie de inversão do típico enredo de possessão demoníaca, sendo que grande parte da história é experienciada mais do lado do monstro infernal que da vítima indefesa. Até o processo que dá forma ao filme, longe de ser uma caça e subsequente exorcismo, consiste mais na fuga impotente da vítima e sua eventual possessão. Não que o realizador Tilman Singer exponha a estrutura narrativa de modo particularmente fácil de discernir. Na segunda metade do filme, suas técnicas de ofuscação são tais que parece que a história se está a dobrar sobre si mesma, aglutinando tempo e espaço até que apenas sobra a indefinição irreal de uma sala de reuniões cheia de fumo que em si é capaz de conter um táxi, uma cidade, o colégio chileno e todos os horrores na vida de Luz.
A referência a Tarkovsky no início deste texto não se refere somente a esta brincadeira cinematográfica com as noções de tempo e espaço. Na sua abordagem estilística, Singer pode reproduzir com estonteante exatidão o tipo de grão, luz e cor dos filmes de terror de baixo orçamento dos anos 80, mas a sua mise-en-scène está muito mais próxima das grandes vanguardas europeias dessa mesma época. Os takes são longos, a montagem é glacial e as composições muito fazem para delinear tableaux de espaço geometrizado onde as figuras humanos parecem sugerir elementos numa pintura em movimento. Tal deliberação de gesto e tempo ajuda à construção de uma experiência hipnótica, onde o espectador é embalado e seduzido pela estranheza do filme e acaba por ser mergulhado de cabeça no seu desorientador feitiço.
A cena de sedução no bar, onde a câmara raramente afasta o seu olhar da crua observação de Nora, o diálogo torna-se numa espécie de mantra ritualístico que nos coloca no mesmo estado de transe que o psiquiatra pronto a ser possuído. Noutras ocasiões, Singer é mais flexível na sua teia de confusão e subjetividade, mesclando as perspetivas de várias figuras em cena através da imagem e do som em constante contradição. O máximo exemplo disso são as cenas em que, na sonoplastia, a perspetiva de uma agente policial, um tradutor, o psiquiatra e de Luz hipnotizada combatem, enquanto a câmara observa como a jovem taxista explica o que lhe aconteceu nessa noite através de um jogo de mímica que dá ao momento a impressão de um exercício de atores observado através do filtro de algum agente alucinogénio.
O melhor de tudo, é que Singer faz todas estas maravilhas cinematográficas com mecanismos incrivelmente simples. O filme praticamente só tem dois cenários, uma mistura sonora abafada e sem grande profundidade, poucos efeitos especiais e um número limitado de atores. Não fosse a sua música de sintetizador e a fotografia nostalgicamente granulosa, seria fácil classificar “Luz” como o raro exemplo de um filme minimalista sobre possessões demoníacas. Ou então sobre obsessão, desejo sexual e amor, como muitas pessoas têm vindo a teorizar face à nebulosidade concetual do filme. Certamente, existem momentos que podem indicar a possessão demoníaca como uma alegoria da necessidade humana de possuir outra pessoa, mas, este é um triunfo que não necessita de tais camadas de significado para lhe dar valor.
Em suma, “Luz” é um filme que coloca de imediato o nome do seu realizador no mapa. Este projeto ainda mostra algumas das inseguranças de um cineasta a assinar a sua primeira longa-metragem, como a telegrafia demasiado enfática das usas influências ou o trabalho de ator que ocasionalmente remete para um registo de workshop teatral. Contudo, a obstinada estranheza das suas escolhas, a segurança com que executa alguns dos seus gestos mais arriscados e o geral primor formal do projeto mais do que compensam tais fragilidades, assinalando Tilman Singer como um dos potenciais grandes mestres do terror em anos vindouros. Uma coisa é certa, se ele continuar a criar obras como “Luz”, capazes de surpreender, hipnotizar e deliciar em igual medida, então não há cinéfilo que se possa dizer insatisfeito.
Luz, em análise
Movie title: Luz
Date published: 9 de September de 2018
Director(s): Tilman Singer
Actor(s): Luana Velis, Jan Bluthardt, Julia Riedler, Nadja Stübiger, Johannes Benecke, Lilli Lorenz
Genre: Terror, Mistério, Thriller, 2018, 70 min
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO
“Luz” é uma maravilhosa experiência de estéticas retro e soluções minimalistas que criam um filme que é mais jogo de hipnose que história de demónios, uma obra que fascina e mergulha os seus espetadores num estado de transe cinematográfico. A sonoplastia, a música e a fotografia são elementos especialmente esplendorosos que, só por si, justificam a existência e celebração da obra.
O MELHOR: As imagens estranhamente belas com a sua granulosidade retro, sua luz crua e composições milimetricamente precisas que dão a entender como todos os elementos visuais à vista são escolhas cuidadas e ponderadas.
O PIOR: No papel de Luz, Luana Velis é um elo fraco, não conseguindo sugerir o magnetismo ou o peso dramático que a figura desta mulher perseguida por um demónio ancestral do Chile à Alemanha deve emanar. Contudo, a sua atuação em pantomima da interação com Nora no táxi é uma delícia.
CA