"Nickel Boys" | © Amazon MGM Studios

Nickel Boys, primeiras impressões | Uma surpresa na corrida aos Óscares

“Nickel Boys” de RaMell Ross surpreendeu na manhã em que foram anunciadas as nomeações para os Óscares, conquistando uma inesperada indicação para Melhor Filme. Apesar de poucos terem previsto, é um resultado muito justo.

Ao longo de 111 anos, a Escola Reformatória Arthur G. Dozier para Rapazes foi um lugar de grande sofrimento, palco para abusos ignóbeis, muitos dos quais só foram conhecidos publicamente depois do seu fecho em 2009. Sempre se soube que estudantes tinham morrido na instituição, mas os números certos eram desconhecidos até que múltiplas investigações forenses desvendaram cerca de 80 covas e provas de mais de cem mortes. A maioria das vítimas eram Afro-Americanas. Perante estes factos, tão chocantes que levaram a intervenção governamental e luto estatal, o escritor Colson Whitehead sentiu necessidade de contar a história daqueles pobres rapazes.

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O livro, “The Nickel Boys,” aparece-nos no seguimento de “The Underground Railroad,” uma dramatização do esclavagismo no século XIX com intervenções de fantasia. Verdade seja dita, Whitehead queria afastar-se de temas tão sérios, mas, segundo o autor, a eleição de Donald Trump em 2016 levou-o a crer na necessidade de tais textos. Com a obra, o autor ganhou o seu segundo Pulitzer e afastou-se dos elementos mais fantásticos que haviam marcado o seu trabalho, fincando os pés num realismo duro que, mesmo assim, recusa simplificar as personalidades retratadas. Sim, os protagonistas do livro são vítimas de abuso, mas esse sofrimento não resume tudo o que são enquanto pessoas.

Uma cinema na primeira pessoa.

nickel boys critica
© Amazon MGM Studios

Tal como a história da Escola Dozier levou Whitehead a reconsiderar o seu percurso literário, também “The Nickel Boys” representa um sobressalto na carreira cinematográfica de RaMell Ross. Até aqui, o realizador, que também é fotógrafo e ensaísta, havia ganho fama como um documentarista, chegando mesmo a ser nomeado para o Óscar de Melhor Documentário pela ousadia lírica de “Hale County This Morning, This Evening.” A adaptação de “Nickel Boys” marca assim a sua estreia num cinema narrativo, mas não significa uma negação das estratégias formais que definiram o seu trabalho anterior.

Afinal, “Nickel Boys” é como poucos filmes seus contemporâneos, adotando uma abordagem radical, um cinema na primeira pessoa onde todas as imagens são construídas em função do olhar das personagens. Ao invés de observarmos passivamente a vida do jovem Elwood Curtis, rapaz idealista na Flórida segregada dos anos 60, experienciamo-la através da sua subjetividade. De facto, só vemos Elwood quando ele mira o próprio reflexo ou quando a câmara salta para os olhos de Turner, seu amigo cínico e companheiro no inferno que é a Academia Nickel – versão ficcionada da Escola Dozier.


Filmes feitos nesta perspetiva não são uma inovação de Ross, há que dizer. Trata-se de um truque experimentado muitas vezes no passado, com especial ênfase entre produções em busca de emoções fortes, adrenalina, e alguma obscenidade também. Pensemos no “Dark Passage” com Bogart e Bacall, no caleidoscópio alucinante que Gaspar Noé criou com “Enter the Void,” ou a ação de “Hardcore Henry.” Em termos da intencionalidade que motiva o mecanismo, “Nickel Boys” tem pouca semelhança com esses predecessores. Um ponto de comparação mais apto seria “O Escafandro e a Borboleta” de Julian Schnabel.

Tal como nesse filme francês sobre um homem paralisado, o drama que Ross assina pratica esta estilização em nome da empatia, forçando o espetador a ocupar a mesma posição material das personagens. Ao invés de considerarmos os rapazes de Nickel, nós somos os rapazes de Nickel. Bem, somos e não somos porque estas estéticas inortodoxas acabam sempre por criar um certo paradigma de alienação. Há raiva na história da Escola Dozier e muita indignação no texto de Whitehead, aqui submetidas a um tratamento tão formalista que arrisca a frieza. Dito isso, e sem querer declarar que Ross é algum milagreiro que consegue fugir a tais consequências, gostaríamos de apontar como as tensões intrínsecas ao projeto não invalidam o seu propósito. A filmagem envolve-nos, mas também nos distancia, propondo uma reflexão mais próxima daquilo que costumamos sentir no museu do que no cinema. Isso não é necessariamente uma falha.

Imagens dignas de museu, filme digno de Óscar.

nickel boys critica
© Amazon MGM Studios

De facto, cada plano de “Nickel Boys” poderia ser exposto como parte de uma instalação ou até mesmo no espólio de uma galeria fotográfica. Ross usa as particularidades da estratégia assumida para criar imagens carregadas de significado e deslumbramento, cada fotograma capaz de contar uma história por si só. O mesmo se pode dizer do som, da montagem que faz essas imagens colidir e harmonizar, das prestações de atores capazes de delinear toda uma vida num gesto. Em relação ao elenco, Brandon Wilson como Turner e Aunjanue Ellis-Taylor como a mãe de Elwood merecem especial aplauso. E Craig Tate, que só aparece numa cena, merece uma ovação de pé pela sua tour de force em miniatura.

Fazem-se honras semelhantes ao argumento adaptado que valeu a Ross e Joslyn Barnes uma nomeação para os Óscares. Mas, por falar nesses prémios da Academia, há que fazer o luto à falta de indicação para Jomo Fray, o diretor de fotografia que tornou a visão do realizador numa realidade tangível, tão visceral quanto poética, entre o simbólico e o mais apurado realismo. Graças a ele, “Nickel Boys” impõem-se na mente do espetador como poucos filmes, cheio de imagens individuais capazes de se enraizar na imaginação. Jamais esqueceremos uma árvore de Natal em contrapicado, com ouropel a cair dos céus como num sonho. Ou o reflexo de um menino sobre imagens de ícones da luta pelos Direitos Civis, todo um fado e aspiração sintetizada no grande ecrã. Ou uma faca carregada com creme de manteiga a raspar na borda de um prato, um momento de ternura maternal no precipício do oblívio. Jamais esqueceremos “Nickel Boys,” filme invulgar e ousado, tão intelectualmente desafiante quanto emocionalmente devastador.

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“Nickel Boys” ainda não tem estreia marcada para o mercado português. Com sorte, as nomeações para os Óscares apressarão a chegada da fita às nossas salas. O filme merece e os cinéfilos de Portugal também merecem apreciá-lo no cinema.

Nickel Boys, primeiras impressões

Movie title: Nickel Boys

Date published: 26 de January de 2025

Duration: 140 min.

Director(s): RaMell Ross

Actor(s): Ethan Herisse, Brandon Wilson, Aunjanue Ellis-Taylor, Daveed Diggs, Fred Hechinger, Hamish Linklater, Craig Tate, Trey Perkins, Ethan Cole Sharp

Genre: Drama, 2024

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Ao transpor os “Nickel Boys” da página para o grande ecrã, RaMell Ross impôs uma estratégia vanguardista ao cinema de prestígio na senda dos Óscares. Ao filmar tudo na primeira pessoa, o cineasta força uma imersão desconfortável que abre as portas a grandes reflexões sobre o racismo nos EUA e a cumplicidade do sistema nestas violências. Entre o ensaio fotográfico e a tragédia, “Nickel Boys” é um trabalho desafiador, capaz de alienar muita gente. No entanto, também tem o potencial para arrebatar tantos outros. Trata-se de um projeto corajoso no contexto de Hollywood, do mainstream, do cinema político onde a estética é tantas vezes descurada.

O MELHOR: A fotografia de Jomo Fray, a prestação assombradora de Craig Tate, a audácia de RaMell Ross na sua transição do documentário para o cinema narrativo.

O PIOR: A alienação produzida pela estratégia visual será demais para muitos espetadores, criando uma barreira intransponível entre a história contada, a História refletida, e aqueles que a deveriam apreciar. Diríamos que entender o trabalho de Ross como uma simples busca pela imersividade empática é um erro, mas o próprio cineasta assim descreveu “Nickel Boys,” abrindo as portas para estas conclusões negativas.

CA

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