Ninfomaníaca – Vol. 1, em análise
Nota prévia
Analisar um filme dividido em partes é arriscado, pois desconhece-se a ‘visão de floresta’ do realizador, mas o facto de empreender a tarefa desta forma não deixará incompleta a crítica na sua globalidade, pois a segunda parte terá as conclusões devidas. Aqui, restringir-me-ei ao visualizado até aos créditos finais da primeira. É provável ainda que na segunda análise aborde capítulos do primeiro volume, inevitavelmente aqui omissos.
Análise
O som das gotas a cair numa viela. Tranquila e enigmaticamente, a câmara leva ao encontro da Mulher. A natureza humana, filmada pelo lado primitivo, escorregadio, pecaminoso, em conjugação com as pedras molhadas do beco e a cor sensual da noite. Isto é Lars von Trier. Ou o final da “Trilogy of Depression”, que teve o seu início com “Antichrist” e prosseguiu com “Melancholia”. Ou, simplesmente, a profundidade do ser humano, mesmo que ilusoriamente filmado à superfície.
Depois de ser encontrada por Seligman (Stellan Skarsgård), Joe (Charlotte Gainsbourg) inicia uma viagem pelo seu próprio passado (com Stacy Martin como Young Joe), através da qual dá a conhecer ao seu interlocutor a sua (vasta) experiência sexual, os episódios recorrentes de sexo desacompanhado de qualquer sentimento, a condenação do que a sociedade abençoa, retira da esfera da heresia e permite que conviva entre nós: o Amor.
Em cinco capítulos (no total oito, mas os restantes três serão divulgados na segunda parte), Joe culpabiliza-se pelo seu comportamento, pois entende ter originado ondas de destruição nas vidas de terceiros, enquanto Seligman vai metaforizando as cenas ouvidas, contrariando a imagem que Joe tem de si mesma, tentando atenuar o ódio-próprio que inunda o quarto onde se encontram.
Sem prejuízo da inutilidade de conteúdo que algumas divagações apresentam, von Trier não me desiludiu. Mas admito que as analogias, metáforas, simbolismos trazidos à colação – ou, pelo menos, a tecnicidade com que são apresentados – são, salvo raras excepções, prescindíveis.
O vício. A culpa. A indiferença. A passividade. Uma busca incessante. Talvez sejam estes os substantivos que melhor acompanham Joe.
O sol que ela abraça hoje não é o que pretende ter entre si amanhã. Não aprendeu – ou desconectou-se dessa aprendizagem – o que é permanecer. Receber. Recordar. Voltar. Talvez rejeite o seu físico. Talvez o contacto sexual recorrente e diversificado seja uma fuga de si mesma. Talvez seja simplesmente doente. Como Brandon, de “Shame”, de Steve McQueen. No entanto, o alheamento não jaz eternamente. Quando volta a si, descobre os remorsos do que terá causado.
Mas será a busca incessante um pecado? E, afinal, em que se traduz essa busca sôfrega e ilimitada? Em dez corpos por dia? Em prazer? E se, inconscientemente, o que pretende alcançar for exactamente aquilo que pretende afastar?
É inegável o efeito explosivo que a projecção mediática exerce nos filmes de von Trier. É, sem dúvida, mais um realizador que não é unânime. A mim, o que me agrada é a sua honestidade e despudor. E, com essas armas, atingir o que trará enorme satisfação a um artista: alguém que segura uma corda a prendê-lo ao público, agarrando-a até ao final, e prometendo uma ligação que durará horas, dias, meses ou, até, anos.
Termino assim: não compreendo como, nos dias actuais, ainda sou confrontada com um ‘disclaimer’ a alertar para uma versão censurada. Com base em nota da produtora, os cortes resumem-se a ‘close-up´s’ de órgãos genitais e a uma ‘tesourada’ na duração do filme, visto que a versão (global, ou seja, as duas partes) tem a duração de cinco horas e meia.
Há quem escreva que as cenas retiradas não comprometem a película. Questão: será distribuída, mais tarde, a versão original? Consideração: mesmo que tivessem recortado, por exemplo, cinco segundos de um ‘travelling’ de comboio, faria diferença. Se o realizador assim o planeou, foi porque não pretendeu essa omissão.
Que tempos (ainda) estes.
(a continuar em “Nymphomaniac – Vol. 2”)