Nostalgia, em análise
Pierfrancesco Favino protagoniza “Nostalgia”, o novo filme do cineasta Mario Martone.
Nas primeiras sequências de NOSTALGIA, 2022, realização de Mario Martone, vemos um homem maduro, seguramente bem instalado na vida, no interior de um avião que indicia pertencer a uma companhia árabe, a julgar pelas palavras que a assistente de bordo lhe dirige. Trata-se de Felice Lasco (papel confiado e bem ao experiente actor Pierfrancesco Favino), napolitano, que regressa ao seu país e cidade natal, sobretudo ao encontro da sua mãe de provecta idade e com visíveis problemas de saúde (notável e corajosa interpretação da atriz siciliana Aurora Quattrocchi). Não obstante a intenção primeira de cuidar da mãe, saberemos pouco depois, através dos encontros que estabelece com diversos interlocutores, mais pormenores da sua viagem e a razão maior para ali estar. Felice, ou Feli como quase sempre o apelidam, viveu mais de quarenta anos num exílio de contornos pouco claros, mas que seguramente mudou o rumo que levava a sua vida durante os anos de brasa da adolescência. Nessa altura, passava os agitados e aventurosos dias e noites de Nápoles com aquele que considerava o seu melhor amigo, um rapaz chamado Oreste. Estes anos de uma juventude inquieta e nem sempre feliz serão intermitentemente recordados através de sequências filmadas em super 8mm e enquadradas no ecrã largo com um ratio compatível ao daquele formato.
NÁPOLES, ONDE O PASSADO NÃO ENCONTRA LUGAR NO PRESENTE…!
Do ponto de vista da reconstituição fotográfica e dos ambientes da época, digamos, o final dos anos setenta ou início dos oitenta do século vinte, o Director de Fotografia Paolo Carnera demonstra a sua notável capacidade e aptidões para, na componente estrutural que lhe foi confiada, nos fazer recuperar a memória das cores e das atmosferas próprias de uma cidade e de uma geração, mas sem nunca as resumir a meros segmentos decorativos ou nostálgicos, contrariando assim na linguagem do flashback aquela que podia ser a possível e redutora noção gerada pela palavra síntese que anuncia o filme, ou seja, NOSTALGIA. De facto, nos primeiros minutos até parece ser esse o sentimento prevalecente, quando vemos Felice Lasco a deambular por uma Nápoles que em muitos aspectos não mudou nada desde que ele a abandonou. Uma cidade secular onde em certos recantos podemos até vislumbrar semelhanças com os labirintos, ruas e ruelas de algumas metrópoles do Médio Oriente, por exemplo, no modo como o comércio se organiza numa espécie de bazar a céu aberto. De certo modo, não fosse a presença omnipresente da igreja católica, Nápoles seria uma urbe de curiosas semelhanças com a geografia social e cultural dos agregados populacionais do país onde viveu largos anos, o Egipto, e a cidade do Cairo onde deixou mulher e uma empresa de construção consolidada no plano financeiro. Mas Nápoles possui muitos caminhos cruzados, e alguns são demasiado apertados para o homem novo e aparentemente pacificado que acompanhamos na primeira parte desta ficção. Por isso mesmo, ao mergulhar num bairro problemático como o Rione Sanità, e ao encontrar na figura de um padre militante, Don Luigi (composição segura de Francesco Di Leva), um apoio material e espiritual para algum desequilíbrio que sente crescer entre a nostalgia gerada pela ausência, o exílio ou a fuga a determinadas responsabilidades, e a realidade nua e crua do presente, Felice entra em rota de colisão com a memória do passado e procura redimir culpas que ficaram gravadas na sua alma, procurando o antigo amigo, Oreste (cuja personagem na actualidade será interpretada por Tommaso Ragno). Mas há um problema: o nome Oreste, pronunciado em voz alta, por si só, provoca um silêncio de medo, mesmo entre aqueles que sobrevivem numa marginalidade assumida, usando e abusando de expedientes criminosos.
Na verdade, Oreste, o rapaz endiabrado de outrora e que ficou na cidade que o viu nascer e que o condicionou a vida inteira, hoje não passa de um mafioso que vive isolado numa espécie de castelo decadente, formado por um complexo de divisões que retalham os seus espaços interiores e dificultam o acesso a esta casa e reduto, onde soldados com diversas hierarquias ajudam a manter-lhe o poder. Mas, no fundo, um poder que parece ser imposto mais pelas diversas cumplicidades entre marginais do que por um verdadeiro e sólido poder pessoal. Diga-se que neste ponto a realização podia ir mais longe, reservar mais fôlego para aguentar e ampliar o confronto que se vai estabelecer entre Felice e Oreste. Na sequência em que finalmente ambos se reencontram face a face, o peso do passado reflectido no presente apresenta-se sempre no fio da navalha e Oreste manifesta no seu olhar e no modo como oculta e desvenda o rosto, sentimentos de uma permanente ambiguidade. E quando se despede de Felice (momento muito bem delineado pela sempre cuidada direcção de actores) esboça um gesto, como a querer demonstrar ao antigo companheiro algo que ficou dentro dele a remoer aqueles anos, mas hesita e acaba por o não concretizar. Fica assim a pairar o eco de um conflito por sanar quando Oreste se apercebe que o homem dito, ou visto hoje, como “bom” que fugiu de Nápoles, e o homem “mau” que por lá ficou, já não encontram na actualidade qualquer hipótese de chão comum. Nem sequer a cidade constitui um lugar para reanimar amizades nem, sobretudo, para limpar as mãos do sangue outrora derramado. Bem pelo contrário.
Nostalgia, em análise
Movie title: Nostalgia
Director(s): Mario Martone
Actor(s): Pierfrancesco Favino, Francesco Di Leva, Tommaso Ragno
Genre: Drama, 2022, 118min
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João Garção Borges - 70
Conclusão:
PRÓS: Belíssima Direcção de Fotografia de Paolo Carnera. Muito eficaz direcção de actores e muito boas prestações dos principais intérpretes, com especial destaque para Pierfrancesco Favino, mas igualmente para Aurora Quattrocchi, cuja breve mas significativa presença possui um peso muito evidente no plano emocional que subsiste nas primeiras sequências do filme e que, de algum modo, abre as portas para o posterior desenvolvimento do principal conflito narrativo. Mario Martone não se limita na realização a dar corpo e alma a um grupo de personagens que idealizou no seu argumento, escrito conjuntamente com Ippolita di Majo. Trata de as enquadrar e de as rodear pelas atmosferas decadentes e algo assombradas da antiga e da nova Nápoles, gerando a partir de certa altura uma atmosfera de sobressalto permanente digna dos melhores filmes de acção. Tensão óbvia que se sente sempre que, por exemplo, uma motorizada passa junto do protagonista. Nunca se sabe se aqueles que a conduzem não são os peões de um jogo negro que se dirigem ao seu encontro para algo ainda mais negro do que uma simples ameaça ou encontrão provocado pela velocidade rasante com que se circula em duas rodas naquela cidade, nesse aspecto bem italiana. Para além do mais, fica claro numa das sequências mais agrestes que essas motos são usadas como meio de pressão sobre os habitantes, numa demonstração de força dos gangsters e dos chefes mafiosos que os recrutam.
CONTRA: Nada que comprometa a visão de um filme que vale a pena descobrir de um cineasta com uma carreira já longa mas ainda pouco conhecida ou divulgada em Portugal, não obstante a estreia há menos de um ano de QUI RIDO IO (O REI DO RISO), 2021, muito interessante abordagem da figura de Eduardo Scarpetta (Toni Servillo), um nome lendário da comédia italiana.